domingo, 30 de agosto de 2009

A noiva morta



Atravessou a sala ciente dos olhares, indiferente aos comentários murmurados. Viu alguém rindo e pensou que era realmente engraçado. A idéia do que ele queria fazer rondando sua cabeça.
“Ela era tão jovem... Vai direto pro céu...”
"Eles tinham um namoro-padrão, padrão 1911 e iam casar em uma semana. Mãos dadas, beijos castos. "
“Coisa sem sentido...”
O burburinho das pessoas atravessava seu torpor e o deixava vagamente irritado. Iria pro inferno sem escalas só pelas coisas que aconteceram ontem. O bispo lhe acena um chamado que ele finge não ver.
“É hoje de manhã, parece que foi um aneurisma...”
Alguém o abraça e ele se vê refletido no espelho grande da sala. Parece tão frio que se assusta. O primeiro abraço foi algum tipo de senha e uma multidão de braços o abraça. Vai se livrando como pode e continua avançando até a porta do quarto, que permanece fechada. Tanta gente! Como souberam? Foi tudo tão inesperado. A mãe aperta suas bochechas numa tentativa esquisita de consolá-lo. A porta do quarto se abre e ele a vê imóvel sobre a cama.
“Na noite passada treze mortos foram encontrados na localidade de... Vítimas de mais um massacre comandado pelo... Desta vez não houve sobreviventes... A receita é simples tempere o frango com... questiona a eficiência das autoridades, totalmente incapazes de impedir esse crime hediondo... E atualmente se encontram ocupados com assuntos ultra-secretos de suma importância, segundo o novo...”
A sogra mudava de canal sem realmente ouvir ou ver coisa alguma, embalada pelas imagens, acalentada pelas vozes. Em algum lugar do quarto o celular tocava. Não pretendia atender. Pouco depois o outro tocou até cair na secretária eletrônica. Ouviu a voz da morta dizendo alegremente: “é óbvio que não estou ou não quero te atender, deixa recado depois do sinal...”
Era incrível o luar daquela noite. A lua estava cheia, seria melhor que não estivesse ela parecia dormir sob aquela luz. Uma lua imensa despejava enganos sobre idiotas apaixonados, idiotas como ele.
Pediu para ficar só com a noiva morta e foi atendido: “deixem o rapaz se despedir” Ouviu o bispo sussurrar. Fechou a porta.
Não teria problemas com o som, tudo estava sendo abafado pelo tagarelar das pessoas e pela porta de madeira grossa, que ele mesmo tinha comprado na demolição de um casarão. Ela tinha adorado o presente.
As luzes estavam sendo acesas, mas preferiu ficar com a lua e com os seus enganos. Abriu a blusa da moça expondo os seios brancos que nunca mais teria. Ela parecia dormir, ele retirava o resto das roupas e as dobrava cuidadosamente. Pensava vagamente na grande sacanagem que o destino tinha feito com ele enquanto beijava a pele fria e deslizava as mãos pelas ancas da moça.
imagem : NudeSleeping_RichardFeynman

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Poema # 1

A um toque das mãos ter as pessoas,
ver nossa vida em suas vidas continuada.
Pioneiras que antes de todos foram ao fundo
e dele regressaram com avisos, precauções.

A um toque das mãos ter as pessoas,
ser feliz com elas enquanto transitam –
estendendo a fronteira de nossa alegria
às ruas onde não eram aceitos os nossos passos.

A um toque, para o bem ou para o mal –
ter algo quebrado quando se embrutecem,
ser ferido quando se atracam,
quando se estilhaçam, ter algo partido.

A um toque das mãos ter as pessoas,
poder viver nelas o que não nos foi possível –
em seus pulmões o ar que nos foi recusado.
Seus sonhos e os nossos em uma mesma sala.

A um toque das mãos ter as pessoas,
ver nossa vida em suas vidas continuada.





(do livro Comerciais de Metralhadora)

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

BRASIL IL IL




Um bando de gente
Vê um jogo do Brasil
Em frente a uma vitrine no centro da cidade.

Na televisão,
A seleção brasileira
Diminui a diferença no placar.

Alívio na calçada
Gritos sorrisos ufa.

Um menino vê o bando
Vendo o jogo do Brasil
Em frente a uma vitrine no centro da cidade.

Na calçada,
O garoto de rua
Diminui a diferença social em seu bolso.
Êta povo distraído.

Alívio na fome
Silêncio sorriso ufa.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Sem bússola




Bato teu mar,
Circundo todos continentes,
Exploro teus músculos e dentes
Até teu desejo me circundar,

E lambes-me o halo
Em ritmos diversos,
E degluto teu falo
No ritmo dos meus versos,

Assim me tens em doses
Aparentemente homeopáticas,
Em mil metamorfoses
E nenhuma didática,

Não existem livros didáticos
Para os desejos enredados.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Breve elegia

Isenta fala

seda, gaze, mordaça

Moral que se esgarça
até o descaso
diz à flor que é brisa
a mão que a despetala


Iriene Borges

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Desgosto

Aproximou-se daquela precária prateleira de madeira, apoiada na bicicleta, para facilitar a fuga caso o rapa resolvesse dar as caras. Olhou fixamente para os caramelos. Não era muito de comer doce, nem podia se dar muito ao luxo, mas não resistia àqueles rechonchudos caramelos de Petrópolis. Permaneceu por alguns instantes observando os caramelos, ficou com água na boca e, então, ao reparar na desatenção do vendedor, que tentava trocar uma nota de 10 com o pipoqueiro, tentou pegar um com sabor de chocolate, os azuis, seus preferidos.

Por um momento, encantado pelas guloseimas, o garoto esqueceu-se do perigo. Pagou caro por esse deslize, enquanto olhava para o caramelo em sua mão, cada vez mais próximo do seu bolso, dos fundos do teatro municipal e, por fim, de sua boca, o vendedor, calejado da vida na rua, em um movimento do pé atirou o chinelo para cima, agarrou-o, ainda no ar, e completou o movimento desferindo uma sonora chinelada no rosto do pequeno ladrão de caramelos.

Toda a praça ouviu o estalo, os pombos, assustados pelo barulho, voaram para longe enquanto o garoto permaneceu estático. No rosto, exibia uma marca vermelha evidenciando todas as ranhuras da sola do chinelo. Um fino fio vermelho escorreu-lhe pelo canto da boca.

Cuspiu um pouco de sangue enquanto ouvia um sermão sobre aprender a nunca mais fazer aquilo. Após toda a bronca, ouvia apenas um zumbido, consequência da chinelada. Saiu dali o quanto antes, para que não o vissem chorando. Apertando o passo, dizia a si mesmo que não chorava de dor, mas sim de raiva. Ao chegar ao fundo do teatro municipal, seu refúgio, chorava, sangrava e tremia. Sentado no canteiro, esmurrando o chão, prometeu que um dia, quando crescesse, assim que tivesse forças, iria vingar-se daquela ofensa e de todas as outras, mataria ele friamente. E, se a mãe se intrometesse, o que nunca fazia, ela também, a contragosto.

sábado, 8 de agosto de 2009

Apenas vestígios


Não sei dos meus caminhos
de amanhã.
Nem de hoje daqui a pouco.

Sei que tenho pernas
e espasmos de intuição.

E prazer nos labirintos.
E tenho cestas de maçãs.

Detenho um grito rouco,
e pressa em seguir chão.

Meus rastros se perderam em
ânsias,

e certos pedaços de asfalto
são apenas ruas sem importância.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Antes que a morte se revele a única saída
Caminharei meus passos trôpegos em busca de abrigo
Deixarei em suas casas minhas cartas de desculpa
...............................................E despedida.
.
Antes que a morte me venha como solução precisa
Direi meus amores aos amores que nunca tive
Sairei nu sob a chuva da maneira que sempre queria
................................Esta será minha despedida.
.
Antes que a morte me tome e me possua inteiro
Confessarei meus desejos insanos e débeis fantasias
Escreverei as poesias não vividas e caminharei
...............................Rumo a minha despedida.
.
Antes que a morte venha como recompensa
Beijando-me a pálida face e o coração se farte em viver
Dançarei solitário à sombra da cidade adormecida
.........................Assim se dará minha despedida.
.
Antes que a morte venha e se acabe a vida
Serei eu, no fundo do poço sem fundo,
Um oco no eco do mundo, vazio no tempo profundo
............................Fazendo minha despedida.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Diálogo fúnebre sobre a Vida

Let Wisdom Guide by Adam Howie

Disse-me a Morte
que a sorte
não é sequer
contorno de linhas perdidas

o amor
a busca de uma sombra no arvoredo,
que seja igual à minha

e a felicidade
é Vê-la chegar
e sem medo
entregar-se
num suspiro
de saber
Ter Sido

Caroline Schneider

domingo, 2 de agosto de 2009

Palavra

A palavra é banal
Mas todo mal que dela provém
Não se sustenta
Em uma língua seca

A palavra, mal dita,
Banal, ressuscita o verbo,
A verve que tua boca,
Resseca

A palavra, então,
Maldita,
Te apimenta a língua
Em lembranças meninas

E em teus lábios renasce
Palavra
Afinal
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