Fazia horas que estava deitado na cama observando o
planetário projetado no teto. O quarto estava repleto de velharias, minhas
companheiras, desde que Sofia me deixara. De quando em vez abria um livro para
manter aquele velho hábito. Já não tinha gosto em leituras, amofinava
facilmente com aquela literatura safada. Não suportava os títulos que recebera
da namorada, livros esdrúxulos, sem composição, nem conteúdo. Haveria quem os
defendesse veementemente, mas, não eu; não fazia caso daqueles livros, preferia
ler Baudelaire, mergulhar nos infernos de Rimbaud, me perder nos processos
metamórficos de Kafka. Sim. Aquilo era literatura e não esses títulos que mais
parecem receituário. Literatura safada. Autores medíocres que querem apenas a
fatia do bolo, povinho sem-vergonha. Não dava para ser assim. Decidi escrever.
Optei pela loucura deixando ser tomado por uma obsessão doentia. Entrei para o
quarto como quem entra para um casulo. Haveria de sair dali escritor, mas por
onde começar? Enchi o quarto de livros raros que encontrava em sebos. Recolhia
todo jornal literário, inscrevia-me em todos os suplementos. O espaço ficava
cada vez menor ante o amontoado de papéis. Os livros empilhavam-se aos montes,
pouco lia até que, definitivamente, perdi a razão. Seis meses. Havia seis meses
que entrara para o quarto. Vivia debruçado sobre os livros e jornais que se
espalhavam vertiginosamente. Dormia em uma poltrona, cochilos curtos, o
suficiente para me recompor. Ficava alheio ao que se passava fora daquelas
paredes. Saía do quarto apenas para atender a porta, raras vezes, para receber
a pizza, o lanche ou os correios. A vizinhança estranhara meu comportamento,
mas que importava? Era apenas mais um. Todo dia nascia gente, morria gente. “O
homem não se barbeia, nem cabelo penteia. Ensandeceu de vez” - pensavam. Andava
pelo quarto metido em um samba-canção, meias de algodão nos pés, ora um livro
de poemas nas mãos, ora um romance. Estava me alimentando abundantemente. Meu
desejo mais secreto me impulsionava.
Acordei certo dia com a sensação de poder confiscar os
mundos, reter nas mãos todos os pequenos universos alheios, tornando-os matéria
de primeira essência. Precisava romper o casulo que se formara entorno de mim,
voar, sair às ruas tentando capturar os olhares, as dores, os medos, a
violência dos homens. Em meu íntimo armava-se um circo, erguia-se uma tenda,
formava-se uma imensa aldeia e, todas as civilizações habitavam-no. Gregos,
romanos, vikings, maias, incas, astecas, normandos, egípcios, persas, aimorés,
tupinambás, botocudos, o mundo inteiro se digladiava em mim. Caminhei por um
tempo estranho à minha capacidade de compreensão das coisas e, me vi perdido em
um imenso labirinto de imagens contorcidas da realidade. Não havia em mim nem
uma faina de prosseguir. Retroceder era impossível, pois não havia caminho de
volta, nem o fio de Ariadne a me conduzir. Segui às cegas em meio à multidão
insana, desfraldei a espada e corri em direção ao sol. Senti um impulso, me
joguei da ponte, voei. Voei alto. Braço erguido, espada em punho, pretendia
apagar de vez aquele que usurpara da terra a condição de centro do universo.
Decidido estava a destruí-lo, mas num golpe de mestre, fizera com que as asas
que meu pai esculpira derretessem, e lançara-me no abismo. A morte não veio
sobre mim, apenas destilou o veneno, inspirando-me todo tipo de desejos de
vingança, um ódio expansivo inflamava-se no peito – gases que se misturam numa
iminente explosão.
(...)
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