segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Obrigada aos que participaram esse mês

Agradeço aos que responderam ao meu apelo, se observaram estou reformulando o blog, conto com a ajuda de todos, indicando escritores e divulgando seus dias.
Beijocas!

sábado, 27 de setembro de 2008

O Raul Cortês



nem sei de quando
vem
nem por que
vem
ou veio, ou véio, gol
veia
ou velocino da preta
véia
sem dente de
ouro
de tolo
amassa bolo
de musgo de
aveia
quac!
de olhos de
baleia
de óleos de
rícino
rico
oco
rente

o grilo falante
besuntado de hidratante
lá do cume do hidrante
profeta, profetiza
precoce, preconiza
exorbitante, exorbita
exegeta, exige a nota
cheio de banca e de pose
distribui amiúde e
de graça, conselhos de graça
sábio artrópode sapiente

sê cortês!
se és o boi de piranha
se és a bola da vez
se és o bode, a rês, o cabrito montês
se o salário não chega ao meio do mês
se o chefe dá sempre razão ao freguês
se te vendem paraguaio por escocês
se a patroa te troca pelo rico burguês
se sonhas recorrentes sonhos de embriaguez
se dois mais dois sempre dá três
se o cachorro do vizinho comeu teu gato siamês
se à tua volta se agiganta a humana pequenez
se só o que vês é cega estupidez
sê cortês!

mandou ver e mandou bem
a boa e redonda letra
que somente iletrados
e letrados sem letra
e letrados não bestas
entendem e compreendem

na birosca do Tião
pedi uma com limão
outra e mais outra
e mais outra e mais

pus rima com cuscuz
avestruz e jesus
eu vi a luz! (porque luz
tem que rimar com jesus
assim como dor deve rimar com amor)

ô tião, sangue bom,
manda mais uma, então!
senti próximo o momento
de praticar o ensinamento
veio vindo lá de baixo
o indomável furacão
poderia despejá-lo
no chão, banheiro, balcão
mas não era de bom tom
jorrei volumoso e terno
no enternado
na calça de linho
na camisa de seda
no sapato de crocodilo
desalinhado e irado
pretendeu racionalizar o desagrado
célere, desarmei o desalmado
desacelerei o celerado:
se quiseres, podes me bater
mereço ser castigado
dês a primeira porrada
se não tiveres pecado
o soco veio firme, forte, pungente
primeiro, a inconsciência
o regozijo, a seguir
constatação, revelação:
cortês fui - me dei bem - aleluia!
vi o túnel negro, vi a luz
Vi o sempiterno Jesus!
(reforço: luz, obrigatoriamente, rima com Jesus)

Carlos Cruz (cruz também, saliente-se) - 27/08/2008

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

COMERCIAIS DE METRALHADORA

Fábula segunda – esofagite

Todas as estatísticas sorriem para mim:
sou um entre as migalhas moídas pelo trânsito.

Meu nome corre entre os que matam
por gosto ou dinheiro –
capa de jornal sensacionalista, de ontem,
me explica como serei vítima de latrocínio.

Um merda sorri no algodão ariano de minha t-shirt,
e é vermelho o papel em que escrevo,
vermelhos os livros de história,
menstruados na estante.

Falo de amor contigo
em meu celular movido a lithium:
você me conta que nosso filho irá se chamar Citotec.

Somos felizes para sempre.




* Do livro Comerciais de Metralhadora

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Les autres

Ils ne savant pas s’oublier de moi
Ils rient et bâillent tout le temps
Ils adorent se perdre dans le temps
Ils jettent ses desires sur moi
Ils croient que je ne comprends pas
Ils observent mon alluse et rient
Ils ne savant pas que je ne peux pas


Tradução do original de "Os outros" do livro "O observador do mundo finito".

sábado, 20 de setembro de 2008

Obedeça seu limite



Sapatos sujos, idéias nítidas e conversas sobre o silêncio são momentos que fazem parte da nossa trajetória.
Quem nunca pisou onde não previa, onde não queria? Quem nunca imaginou claramente que podia, e quando foi ver, era totalmente inviável o que havia imaginado? Quem nunca teve uma idéia brilhante, mas que de brilhante mesmo só havia o sorriso de satisfação com o gozo de ter pensando algo novo, pois quando foi transcrever para o papel o projeto foi abortado, porque sofria de má formação. Quem nunca parou para se perguntar o porquê do silêncio de alguém, o porquê do nosso próprio silêncio? Quem nunca se incomodou com a falta de palavras?
O filósofo francês Jean-Paul Sartre afirma a contingência do mundo, ou seja, para ele, o ser humano é pura existência, a essência procuramos realizar a partir do nosso existir. E existência implica em ser-humano-no-mundo, sendo assim, o filósofo nos oferece a idéia da finitude.
Quando falamos em finitude, a tendência é a associação com coisas infelizes e tristes, contanto, esquecemos que esta é a oportunidade que temos de existir, é a minha existência agora que me faz escrever esse texto e a sua existência que te faz ler este texto em meio a inúmeras possibilidades no mundo. O ser humano quer possuir tudo, até mesmo a sua própria vida, a ponto de querer eternizá-la em si mesmo. A vida é um curso e todas as vezes que paramos para tentar prolongar para além da nossa própria existência paramos esse curso, paramos de realizar a nossa essência.
“A liberdade que se revela na angústia caracteriza-se pela existência do nada que se insinua entre os motivos e o ato. Não é porque sou livre que meu ato escapa à determinação dos motivos, mas, ao contrário, a estrutura ineficiente dos motivos é que condiciona a minha liberdade”. (Sartre)
É dentro de um número de possibilidades que podemos fazer escolhas, mas, no entanto, entre as muitas escolhas que fazemos há espaço para sucessos e fracassos. O fracasso talvez faça parte desta estrutura ineficiente dos motivos que nos proporciona a liberdade de mudar, de fazer novas escolhas, afinal, se tudo fosse apenas sucesso, o sucesso não poderia existir. Para comemorar os acertos é preciso ter errado um dia, para falar as palavras mais bonitas, é preciso ter feito silêncio, é preciso experimentar a vida como fundamento da nossa própria essência.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Idéias




Ainda vivo na inspiração
No movimento das nuvens
Em redemoinhos mirabolantes
Na busca de uma saída
Para os pensamentos
Brilharem como estrelas
Em becos escondidos
No céu da minha mente

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Sons e Silêncios

Passava já das seis e meia da tarde quando os bombeiros chegaram. Os vizinhos, em polvorosa, atrapalhavam a todos com seus corpanzis intrometidos e sua curiosidade indiscreta. O dono do apartamento, um excêntrico por natureza, que ninguém sabia ao certo o que fazia, estava desaparecido havia cinco dias. Depois do final de semana, começaram a estranhar a falta dos costumeiros sons que vinham do recinto. Apesar de muitos reclamarem durante meses a presença deles, agora reclamavam justamente do silêncio de morte que reinava naquele pavimento. Apesar das instruções dos para-médicos, que pediam mais espaço para trabalharem, os vizinhos insistiam que podiam estar ali, afinal foram eles que deram o alarme, que conviviam com o desaparecido e além de tudo, eram vizinhos, ora essa. Mereciam saber o que havia acontecido no seu próprio prédio.

Seu Miranda, o zelador, foi o primeiro a se manifestar:

- Sempre achei aquele moço muito do esquisito; chegava só tarde da noite, andava sempre de óculos escuros, tanto de dia quanto de noite, carregando para cima e para baixo aquele monte de livros (dois no mínimo). Um Bom dia ou boa noite. Nunca o vi falar mais do que isso... Dois anos trabalhando aqui e nunca passou disso. Rita a morena que trabalhava na lanchonete que ficava ao lado do prédio e morava a algumas portas dali emendou:

- Para mim ele sempre dizia: “Um Malboro Ligths, por favor”... Educado, mas muito calado. Fumava muito e tinha sempre um certo tipo de tristeza chique, típica daqueles tipos intelectuais, só que esse não era metido a besta... Achava ele bonito, calado, fumante, mas bonito. Sempre tive muita pena e curiosidade de saber o que o fez daquele jeito...

- E aquele maldito piano? – Dona Eulália, a velhota do 718, esbravejou - Todo santo dia ele tocava aquele piano. E quase sempre a mesma música... Uma música bonita, mas triste e medonha ao mesmo tempo. Acho que era um Strauss... Um lúgubre e belo Strauss... – o olhar da velha se perdeu corredor afora.

Todos se voltaram para a entrada do apartamento. O estrondo do forçar da porta, quebrada sob o peso dos esforços do serviço de emergência, calou a todos: a vontade de saber o que aquelas paredes escondiam imperava. Ao escancarar o pórtico, um fedor ocre recendeu pelo andar indicando que alguém ou alguma coisa estava se decompondo ali, isso era notório. Entre máscaras e horrendas caretas de nojo as pessoas foram adentrando lentamente a sala: o aspecto simples e até discreto contrastava com tudo o que haviam imaginado antes. Os móveis bem distribuídos e de bom gosto; nos sofás, belas almofadas; nas paredes, entre um monte de fotos, alguns quadros. As janelas, todas fechadas e escondidas atrás de imponentes cortinas que desciam do teto até darem no rés do chão, ajudavam a prender aquele mau cheiro que vinha de dentro. A ranheta Eulália foi quem se apressou a abri-las:

- Arre, e têm gente que ainda atura isso... Podia-se observar uma nítida presença feminina em todo o aposento. A organização dos espaços dizia isso. Mas na biografia do local não cabia uma proprietária, até onde todos sabiam, ele morava sozinho. Então os detalhes começaram a aparecer. Nas fotos, o dono do apartamento aparecia sempre sorrindo, acompanhado de uma bela garota, loira, cabelos em longos cachos. Em épocas diferentes, estava o casal clicado em vários lugares ao redor do globo: Roma, Paris, Londres, Milão, etc. Sempre a mesma moça e a mesma felicidade compartilhada.

- Ele parecia feliz... – Rita passou a mão sobre uma das fotos, aproximando-se da parede, suavemente, como que sentindo o contato com quem estava retratado nela. Ao abrir os olhos, percebeu que todos a observavam. Se recompôs: - E vejam os quadros, também têm uma coisa em comum ! Todas as telas traziam a mesma assinatura: linda.m. Simples assim. Não eram grandes obras de arte, mas pareciam ter no dono do lugar seu mais ardoroso fã. Ninguém levou isso em conta. Daí cada um passou a fazer sua própria investigação e a levantar uma hipótese
particular sobre o que teria ocorrido. Em todos os cômodos reinava uma organização que beirava a perfeição; na verdade, para muitos chegava à irritação. Como poderia um cara solteiro, solitário e só, viver naquela aparência de normalidade cotidiana caseira conjugal? Uma sombra feminina reinava absoluta sobre o lugar, em todos os espaços, até que enfim, chegaram ao quarto que um dia fora de casal: com as paredes derrubadas, um colchão jogado no canto, várias garrafas vazias de vinhos e outros tipos de bebidas emborcadas para todos os lados, imensos cinzeiros lotados, folhas recheadas de partituras, textos e poemas mal escritos, faziam um cenário desolador, não fosse a imponente figura do piano de cauda, postado de frente para a sacada aberta. A visão que se tinha, quando sentado pronto a dedilhá-lo ficava entre o esplêndido do céu e o vazio do nada.

Aquele cômodo, sozinho, transmitia toda a cota de sentimentos aprisionados que a grave fisionomia do proprietário nunca deixara transparecer. Estavam todos ali parados, sem poderem ao menos lançar algum tipo de conjectura sobre a situação. Não restava mais nada a dizer.

- É um belíssimo piano – Assinalou seu Miranda.
- Deve ser aí que ele toca o Strauss – Assegurou Dona Eulália.
- E sobre ele têm uma mancha branca esquisita e outra das fotos – Emendou Rita.

O silêncio voltou a pairar apenas por instantes, sendo cortado de pouco em pouco pelo vento cortando as janelas abertas.

- É um Steinway, americano, modelo “D” , 1930. Gabinete em mogno natural e três pernas douradas no feitio de águias. – Um estranho alto falou no fundo do grupo.
- Hein?
- O piano.
- Como sabe tudo isso? – Miranda indagou.
- É meu. Herdei de meu avô. Todos se viraram para o recém chegado. Era o dono do apartamento! Como ele havia chegado ali, pegando a todos de surpresa no momento máximo de intromissão alheia, era um mistério. Um dos bombeiros perguntou a respeito do fedor que empestava o ambiente.
- Sigam-me até a cozinha – ordenou com voz que não aceitava ressalvas.
Abriu o forno e demonstrou a causa: um lagarto que fora assado, mas por haver sido deixado naquele local, apodrecera, causando o mau cheiro. Desculpas oficiais dadas, alguns formulários preenchidos e aqueles que ali estavam a serviço se retiraram com olhares de reprovação aos vizinhos curiosos. Estes, ainda permaneciam por ali, tentando obter mais informações para suas dúvidas não respondidas.
- Pois bem, na qualidade de zelador é que me vi na obrig..
- Agradeço sua “preocupação”. Agora se fizer o favor de se retirar. A propósito, quero minha porta consertada amanhã. – a voz do dono era baixa e pausada, não demonstrava nenhum tipo de sentimento.
- Claro... Pode ficar tranqüilo. – Seu Miranda pulou para o corredor, esperando as duas pessoas que ainda ficaram para trás.
- Mas meu filho – Dna. Eulália tentava um pouco de compreensão, apelando para a própria idade - Ficamos sem saber o que fazer, você têm que entender. Eu, de minha parte, sentia falta daquela linda peça de Strauss e...
- Sonata ao Luar. Beethoven. Essa é a música que gosto de tocar.
- E aquela moça? – Rita não se agüentava de curiosidade.
- Alguém que amei demais. Morreu há muito tempo. Ela era pintora, eu pianista. Depois que o pior aconteceu, vim me refugiar aqui, pois as pessoas não nos conheciam e ninguém ficaria “bisbilhotando” o que me acontecia... Acho que me enganei a esse respeito.
- E seu sumiço esses dias?
- Fui providenciar o enterro de um velho amigo que considerei por muito tempo.
- Desculpa...
- Tudo bem. – Uma baforada de leve, abaixou-se e pegou a mala que havia deixado ao lado da porta ao entrar.
– Agora se não se importam, gostaria de ficar sozinho...
- Ah, tudo bem. A gente se vê outra hora, não?
- Pode ser... As duas saíram juntas, indo formar um pequeno grupo com o velho zelador. Os olhares cabisbaixos confirmavam que sentiam no fundo um pouco de vergonha por terem pensado tantas coisas ruins de um rapaz tão sofrido.
- Ele é artista. Isso explica ser tão estranho... E como toca bem!
- Pode ate ser estranho, mas viu o tanto que ele é bonito sem os óculos?
- Se não fosse a curiosidade de vocês duas a gente não teria entrado nessa. Ouvi poucas e boas do pessoal do resgate. E agora o condomínio ainda têm que pagar a porta...
- Ora essa Miranda – A velha Eulália achava algo que abonava a ação de todos - Então teríamos que suportar aquela fedentina se ela se espalhasse pelo prédio? Não saber quem mora ao nosso lado? E se o moço fosse um assassino?
- E se fosse um tarado? – os olhos de Rita brilharam ao dizer essas palavras

Seguiram corredor afora, elaborando um sem número de “se”... O pianista ajeitou o que sobrara da porta da entrada de seu apartamento, pegou a mala, foi ao freezer na cozinha buscou um pacote e se dirigiu para o quarto. No trajeto da volta, parou e olhou para as fotos na parede. Seu rosto se contraiu por um momento. Seguiu para o aposento e se trancou nele. Abriu uma garrafa de vinho, pondo-a com um copo sobre a tampa do piano. Feito isso, abaixou-se e retirou da mala um objeto redondo, fazendo o mesmo com algo que havia trago do freezer. Agora haviam dois objetos lado a lado, um dos quais, sobre a tal mancha esbranquiçada... O som claro e inconfundível começou a elevar no ar e a melodia do velho Ludwig ganhou o lado externo do prédio, alçando vôo rumo aos céus como uma espécie de oferenda. O luar daquela noite fazia jus ao nome da bela sonata. Na sua suíte cheia de arranjos e toalhas de crochê, D. Eulália começou a menear a cabeça, acompanhando a música. Do seu quartinho de empregada, Rita se contorcia voluptuosa, pensando naquele homem sentando ao piano, tocando por um amor perdido. Sem concorrência, portanto. Seu Miranda, no seu escritório, tomava um whisky falsificado e folheava revistas pornôs... Foda-se, cada um têm suas dores neste mundo.

Enquanto a melodia corria, o pianista falava alegremente com os dois objetos postados diante dele:
- Meu nobre Yago, achava que era mais esperto do que eu... Roubou-me parte do meu dinheiro, conseguiu fugir... Por isso não teria perdido meu tempo contigo. Dinheiro nunca foi um problema para mim, você sempre soube disso. Agora mexer com a minha amada foi o seu erro. E o dela foi aceitar isso. Não... Não diga nada ainda, Linda. Vocês não se viam há tanto tempo. Se servir de consolo ele gritou bem mais do que você... Não vamos desperdiçar esse momento com velhos rancores. Hoje estou muito feliz de estarmos todos juntos. Sei. Teve este pequeno constrangimento com meus vizinhos esquisitos, mas vocês verão que eles não darão mais problemas... Se derem também, aumentamos o sarau... Vamos sentir a música e sorrir... A risada demente ecoou na noite, oculta pelo som do piano, regido por um louco sentado defronte a duas cabeças...

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Incêndio


Chamas lambem a terra e cinzas bailam no ar.

Alheios a dança, galhos ressequidos apontam para o céu

como a suplicar a Deus a piedade dos homens.

domingo, 7 de setembro de 2008

O Escultor


Espaço e tempo se comprimem em uma linha tênue em que os fatos não fazem sentido. Ao homem, resta criar e buscar caminhos. Sentado sobre a argila, com mãos trêmulas, um velho modelava o barro. Em sutis movimentos, desenhava o que viria a ser a própria imagem em simulacro preciso do que, incondicionalmente, parecia-lhe semelhante. Tinha em mente todo o desejo da criação e, em retoques, dissimulava o que não poderia refletir a originalidade da obra. Não poderia fazer-se do barro, menos ainda, criar-se daquela argila que se apresentava imprópria para esculturas. Desejou como ninguém. Fez-se escravo da loucura que impusera a si próprio. Fizera uma cópia perfeita de si mesmo introduzindo-a em um cubo de espelhos e, do alto, contemplava pelo orifício a caleidoscópica imagem que girava sobre os pés em movimentos contínuos e circulares que não levariam a lugar nenhum, senão à repetição estressante que é viver estagnado, submisso à rotina que rouba até mesmo a capacidade de criar a perfeição pelas próprias mãos, ou ainda, dissimulá-la. Pensava. Recolhia-se como uma tartaruga se recolhe ao casco numa tentativa de esconder-se, inutilmente. Imaginava caminhos, possibilidades; porém, a única certeza era de que caminhos não existiam. Então, como sobreviver? A linha se comprimia mais e mais, sem muito esforço, possivelmente se romperia. Surgiu uma luz em meio à sombra. Meteu as mãos dentro do cubo de espelhos e retirou a escultura, de um excesso de barro fizera outra escultura devolvendo-as ao caleidoscópio. Eram duas a serem contempladas, observadas. Ambas giravam sobre os pés, embora em sentido oposto, cada espelho refletia em si outro par de imagens, uma multidão se formou, girando feito peão. Os olhos do velho, em súbitos lampejos, derreavam encantamento. Suas mãos, cansadas, aplaudiam o baile; vez ou outra se esfregavam no intuito de afastar o frio que aos poucos tomavam conta da pele. Vida inútil. Fazer cópias esquisitas da própria inutilidade. Rodopiava por aí, consciente da embriaguez e da cirrose. O fígado era uma rosa despetalada que vinha à boca e, ele, tonto do último porre, girava sobre os pés, ziguezagueava pela rua até que, alguma sarjeta, respeitosamente, ouvisse seus segredos. A linha se rompera. Pouco a pouco, em giros acelerados, as esculturas se chocaram voltando ao seu estado natural, um monte de argila sem sentido. No cubo de espelhos não sobrara nem mesmo esperança, caixa de pandora aberta aos fins dos tempos. Irremediável lembrança. E, aqueles olhos que, imersos em lágrimas, outrora admiravam os movimentos já não estavam ali. Foram-se amiúdes, de esquina a esquina, em solavancos; tropeçando no vento, se enroscando na brisa. Cegado pela catarata, tombou inútil. Indigente entre as gentes do asfalto. No chão negro, o peito moribundo arfava. Olhares espantados contemplavam a morte chegando silenciosa. Num último suspiro, entregou o espírito e, o sangue escorreu pela sarjeta.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Vestida de Branco




Dormi vestida de branco
Para tornar-me anjo lascivo
E voar em sonhos até você

No caminho, encontrei um querubim
Que me disse, um dia, tê-lo flechado
Com dardo envenenado de amor
Só para mim

Ao chegar,
camisola de renda,
deixando meu corpo à mostra
para teu deleite, sem vendas
Tornamo-nos feras

Com unhas e dentes
Desnudou-me
Aliterando pulsante desejo
Que uniu dois corpos em um

Ofertei-te duas rosas
Róseas, perfeitas
Que tu degustaste
Com olhos, boca e mãos
Prostrastes teu sexo em compaixão
E, com paixão, volitamos até as estrelas.