sábado, 18 de agosto de 2007

Making Off

Sentado, elegantemente vestido com um roupão azul, defronte seu trailer, um Vegueros descansado no cinzeiro, perto da taça de Velve Clicquot, estava ele entretido com a leitura de um de “seus Machados” preferidos: uma coletânea de contos do gênio de Cosme Velho. Costume antigo, durante estas leituras sempre atinava de colocar alguma música que tivesse algo a ver com o que lia. No caso, havia escolhido uma das Polonaises de Chopin. Um mestre deve ser apreciado ao som de outro, pensou. Era de se estranhar, para um incauto observador, vê-lo naquela paz e quietude, de óculos bifocais no rosto, compenetrado no livro e com um semi-sorriso condescendente no canto da grande boca. Ele era uma das personificações da maldade, o ser que somente ao citar do nome, já enchia de medo e pavor aqueles de coração mais fraco; a perfeita definição de um ser malvado, também pudera: era nada mais, nada menos que o Lobo Mau. Eis o motivo da incongruência inicial.
Enquanto me entretinha apresentando o elemento em questão (para usar o jargão policial), eis que uma outra personagem sorrateiramente adentrou os imensos estúdios “Faz de Conta”, onde o primeiro relacionado estava, como já disse, se entretendo com boa leitura. E isto é uma coisa muito importante; a leitura abre horizontes quase ilimitados; Canis lupus da silva (seu nome de batismo) descobrira isto bem cedo. Pois bem, a sorrateira visitante veio chegando de mansinho e quando estava prestes a surpreendê-lo foi agarrada por um par de mãos fortes:
- Ahá! Pensou que podia ludibriar a segurança!
- Calma, deixa eu só trocar umas palavrinhas com “seu” Lobo.
- Você sabe muito bem que mister Lobo não dá entrevistas.
Impressionado com a coragem da garota, uma bela repórter de cabelos negros, ondulados como um dia de mar agitado, possuidora de belos lábios carnudos e uma voz instigante, o astro das fábulas levantou os óculos interessado:
- Pode deixá-la, Arlindo.
- Mas mister...
- Tudo bem, sei que você está fazendo seu trabalho, mas esta jovem também está. E acho que será benéfico trocarmos algumas impressões, nem que seja em off.
O guarda, embora relutante, acatou o pedido. Vai entender estes artistas, pensou enquanto se afastava meio emburrado.
- Olha, não me tenha por uma paparazzi qualquer. Trabalho para o “Além da Lenda Post” e me pediram que lhe fizesse algumas perguntas.
- Você é uma foca, não?
- Como você sabe?
- Bom, como o Arlindo disse, não sou chegado aos microfones ou gravadores.
- Mas isto têm algum motivo em especial?
- Bom, seu comportamento já o demonstra.
- Meu comportamento?
- Claro, já está me interrogando – riu de maneira afável. A garota enrubesceu.
- É, acho que você têm razão. Se quiser, posso me retirar.
- Não, fique. Acho que já está na hora de colocar alguns pingos nos “is”, além de lhe ajudar a dar uma lição ao seu chefe de redação.
- Qual lição?
- Que a peça que ele queria lhe pregar, vai sair pela culatra. Bom, aproveite bem as perguntas, porque elas serão poucas. Aceita uma bebida? – Um sorriso se insinuava.
- Quer dizer que vai me deixar entrevistá-lo?
- Uma pergunta a menos. Suco ou champanhe? Ah, a partir de agora, podemos passar para o modelo de entrevista, assim você poderá se sentir mais à vontade.
A.L.Post - Suco, por favor... Então, como o senhor começou sua carreira?
Lobo Mau - Você, por favor – Após servir o copo da repórter, voltou a acender o cubano.
A.L.Post - Ok, como você começou sua carreira?
Lobo Mau - Deixe me ver. Venho de uma alcatéia grande, do interior, mas apesar de sermos muito chegados e termos basicamente as mesmas vontades, vi que aquele negócio de sair como um lobo solitário, uivando nas noites, até formar minha própria alcatéia era meio arcaico. Decidi me dar um tempo, enquanto aproveitava esta época que é muito importante na vida de um macho alfa. Comecei a fazer teatro por conveniência dos costumes, pois geralmente temos que atuar para vivermos em comunidade, daí para o cinema foi um pulo.
A. L. Post - Mas como um ser tão mau como você conseguiu se infiltrar neste meio?
Lobo Mau - Uma das muitas calúnias atribuídas a minha pessoa neste negócio. A propósito, poderia suprimir este “mau” no meu nome? Chame-me de Lobo, a partir de agora. – O aceno de cabeça da repórter indicou que ela atenderia.
A.L. Post - Mas de onde advêm isto?
Lobo - Bom, em geral, no começo da carreira somos obrigados a aceitar papéis que não nos agradam, ou a fazer alguns tipos de produção que nos envergonham no futuro. É o caso da Ovelha Negra. Na falta de oportunidade, fez uma ponta em um filme pornô, o que lhe granjeou a alcunha pela qual é conhecida. Acho que foi por causa da roupa de couro, da máscara e daquele chicotinho...
A.L. Post – Quer dizer que tudo neste mundo é encenação?
Lobo - Bom, uma boa parte. Mas reitero que somos seres tão normais quanto quaisquer outros.
A.L. Post – Mas e aquela estória da Chapeuzinho e da Vovó? É verdade que assediou a garota durante as filmagens?
Lobo (pensativo)- Um dos meus melhores trabalhos...(pigarro) Veja bem, o que saiu na imprensa na época foi para dar mais visibilidade ao filme. Cheguei, sim, a sair uma ou duas vezes com a Vovó (que na verdade só é mãe), mas como bons amigos, entende? A Chapeuzinho era uma criança na época, seria até um crime. Se bem que, agora, passado tanto tempo, é triste ver alguém que prometia tanto estar atolada em produções um tanto quanto “duvidosas”...
A.L. Post – Que tipo de produção?
Lobo - As da Ovelha Negra... Mas cada um com seu cada um, não?
A.L. Post – E as acusações do Lenhador?
Lobo - Ah, quem levaria a sério um cara que mata árvores para viver? Sou do Greenpeace, tenho sérias reservas ao comportamento daquele senhor.
A.L. Post – Mas o Pinocchio corroborou o que ele disse.
Lobo - Acho interessante aquele cara de pau tomar partido dele. Um sujeito feito de madeira concordar com um madeireiro. Cheira a medo. E olha que tenho faro para isso.
A.L. Post – Falando no filho do Gepeto: Tanto ele quanto a Rainha Má conseguiram se eleger nas últimas eleições. Há rumores que você também se candidataria.
Lobo - Bom, com o nível da nossa política, acredito que os dois estão, como pode-se dizer, “em casa”. Os talentos verbais do boneco (que alguns dizem ser uma marionete, embora eu não tenha uma opinião formada sobre o assunto), mais os poderes especiais da Rainha, dão a ambos ótimas condições para se manterem entre seus novos pares. O que acho difícil é o primeiro cumprir as promessas de campanha e a segunda não fazer desaparecer parte do erário. Mas se assim agirem, não estarão sendo tão diferentes dos que lá se encontram.
A.L. Post – Uma última pergunta: e o coração deste canídeo, como vai?
Lobo - Semana passada fiz um eletrocardiograma, está melhor a cada dia, segundo minha enfermeira particular.
A garota desligou o gravador, após um lento cruzar das belas pernas, agradeceu:
- Seu Lobo, nem sei como lhe agradecer!
Um sorriso largo, que cobriu toda extensão da imensa boca descortinou-se, ouvidos em pé, olhos fixos no alvo, passou um dos braços pela cintura da repórter e deu uma piscadela, das mais safadas:
- Pode deixar isso com o Lobão aqui. Você está em boas mãos...

3 comentários:

Marco Ermida Martire disse...

Humm, bem legal, Deveras. Idéia surpreendente.
Eu faria duas correções no princípio:

"Sentado, elegantemente vestido com um roupão azul, defronte seu trailer, um Vegueros descansado no cinzeiro, perto da taça de Velve Clicquot, estava ele entretido com a leitura de um de “seus Machados” preferidos: uma coletânea de contos do gênio de Cosme Velho."

Show!

Glauber Vieira disse...

Grande Deveras, gosto muito dessas versões modernas das fábulas e histórias infantis. Se vc resolver incluí-las num livro, me avise.

Larissa Marques - LM@rq disse...

Deveras é sempre deveras...Risos. Não me canso de me surpreender com sua escrita. Deveras em adapteções de contos de fada? Não poderia supor! Beijo!