quarta-feira, 10 de março de 2010

Mais Insólito



Mais Insólito
Cris Linardi

Era uma situação incomum. Ambas não haviam descoberto ainda o que eram. Se irmãs, amigas, inimigas, projeto inacabado de algum experimento científico. A verdade é que as mínimas experiências de uma interferiam drasticamente na outra. Se uma comia amendoim, simplesmente porque adorava amendoim, a outra tinha uma terrível reação alérgica que atingia as duas, eram acometidas por vergões avermelhados, como se tivessem sido atacadas por um enxame de abelhas. O pior acontecia quando uma se apaixonava. Mesmo solteira, a outra tinha que acompanhá-la aos encontros.
Atitudes discrepantes existiam, uma era mais discreta e certinha do que a outra. Não ir para a cama no primeiro encontro, deixar as coisas caminharem naturalmente, tudo acabava sendo atropelado pela ousadia e pressa da mais petulante. Os homens ficavam confusos e sempre fugiam. Depois vinha a tristeza, a ressaca moral e a vontade incontrolável de uma estrangular a outra.
Todos confundiam ambas, mesma cara, mesmas roupas; as personalidades extremamente diferentes, contudo, apareciam rápido. Uma ajudava a outra, às vezes, é verdade. O afoitamento de uma era emprestado à mais comedida e a paciência era trocada com a mais ansiosa.
Foram vivendo e convivendo. Tentando se acertar, mas as desavenças vinham, por vezes tão violentas que ambas se esqueciam das qualidades e só se concentravam nos defeitos.
Encaminharam-nas ao analista. Ele tentou ajudar, contudo quase enlouqueceu junto com as moças. Pediu ajuda a um amigo psicólogo que desistiu horas depois de tentar.
A mais discreta maquinava dia e noite uma forma de se livrar da mais atirada. Lendo seus livros de filosofia, analisando o comportamento humano, algumas ideias começaram a se formar na mente. Ela mal sabia que a outra já pensava em algo para alterar a situação insustentável.
Aos trintas anos, a maturidade não permitiu que aquilo continuasse. Certa tarde, a metida a filósofa abandonou seus estudos e foi até o quarto onde a outra descansava. A faca na mão trêmula não parecia tão assustadora. Aproximou-se, o cheiro de jasmim do creme pós-banho roçando-lhe o nariz. Não, ela não teria coragem. Diante do vacilo de suas pernas, o coração acelerou e os pensamentos gritaram: é preciso! Até quanto mais aguentará?
A irmã abriu os olhos. Entendeu o que acontecia. Olhares se cruzando, sua serenidade assustou a outra. Não seria possível concretizar seus planos. Ágil, tomou o objeto da mão da moça. Por meio segundo que durou horas lentas, ambas vislumbraram os semblantes diabólicos e assustados, havia brilho estranho, misto de dor e satisfação.
A lâmina rasgou a carne de uma. Caiu ensanguentada sobre a outra, esta sentindo toda a dor de ser golpeada. O mundo foi sumindo lentamente. O teto foi ficando desfocado, depois escuro. E a vida foi-se esvaindo em sangue quente. Ambas tinham se esquecido que moravam no mesmo corpo.

3 comentários:

Flá Perez (BláBlá) disse...

ai puta que pariu! fiquei arrepiada!
bom!

Joana Masen disse...

Muito bom! Narrativa que nos prende até o final. Adoro seus contos. Parabéns!

Larissa Marques - LM@rq disse...

grata por sua presença!