sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

caranguejo - foto rafael nolli


    XXXVII
   10/02/03

O Poema agoniza. Repleto de chagas, suspira pesado um denso ar tuberculoso. Tenso, o olhar vaga pela gare: mas não horizonte sobre o corpo dos prédios. Legado a vida [sub]urbana, o Poema intoxicou-se com os monóxidos de carbono e com o veneno de sua própria entranha cavernosaveneno que estava hibernando enquanto o amor ainda era uma possibilidade.
Dói-lhe o peito arfante. O coração emudecido traqueja. Onde estão os poetas para revigorá-lo? Ou os médicos com suas formas módicas de curar?
(Os poetas morreram carbonizados pelo brilho de um século que anunciava, profeticamente, uma chegada grandiosa – no entanto advertia de antemão: seria, antes de mais nada, destruidor! Os médicos se esquivam: o Poema não tem plano particular...)
O Poema geme, um cheiro atômico o nauseia; um brilho nuclear ofusca-o... Pela sua mente turva, bailam as últimas homenagens recebidas: antologias patéticas, seletas escatalógicas, patologias poéticas...
Tomando mão de suas últimas forças, o Poema se arrasta. Parte em busca de paz, em busca de uma distante aurora despetalada, longínqua. (Impossível?)
E, no rastro de sangue deixado pelo seu mórbido corpo moribundo, alimenta-se um rabugento gato preto com suculentas lambidas lascivas...




* do livro Memórias à Beira de um Estopim

2 comentários:

Glauber Vieira disse...

Bela metáfora, adequada não apenas para o papel da literatura, mas para a própria humanidade.

Graça Carpes disse...

"o Poema não tem plano particular..."

Também ñ o tem... o Poeta!

Adoro ler sua felina palavra, Nolli.
:)