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Acordei. Meus olhos aos poucos se habituando ao lusco-fusco daquele fim de tarde, fim de domingo, fim de um sono de dois dias. Das janelas do quarto de paredes nuas eu podia ver a chuva caindo. Faz calor, apesar da chuva, um calor sufocante. Ouço o som da televisão ligada no outro apartamento, algumas vozes abafadas e o tilintar da chuva na cobertura da garagem. O telefone toca e eu tateio tonta em busca dele. Atendo. Não morri afinal.– Alô.
Minha voz me parece surpreendentemente firme.
– Oi. Esqueceu?
– De que?
Pergunto enquanto levanto meio trôpega e nua.
– De mim.
– Parece que sim.
– Vem me ver?
– Pode ser.
– Quero te ver.
– Sei que quer. Apareço depois.
Desligo sem esperar resposta. Lá fora tudo me parece calmo e ameno como a paisagem de um filme ou de uma fotografia antiga. A chuva parece fresca. Nua e tonta, caminho pelo apartamento abafado e mortiço. O calor torna meus movimentos ainda mais pesados. O telefone toca de novo. Deixo tocar.
Olho para a cartela de comprimidos vazia, para a meia garrafa de Martini e penso que devia ter calculado melhor. Não estou mal e também não estou bem. Meu sorriso refletido no espelho parece quase convincente, pareço calma e tranqüila, nada em mim diz: “tome conta de mim” ao contrário pareço pronta para cuidar de tudo e todos.
O telefone toca e eu ignoro. Um banho rápido e me visto rapidamente também. Camiseta branca, minissaia, tênis, algum dinheiro no bolso e nada mais.
A cidade parece vazia e estranha, quase tão vazia e estranha quanto eu. Caminho sem pressa através da chuva fina, quase invisível. Preciso andar para afastar o torpor que a mistura de Martini e comprimidos tinham deixado. Era quase engraçado, não morri, mas dormi por dois dias e ninguém notou, nem ele.
Toco a campainha. Ele abre a porta sorrindo e sem falar me beija. Não penso,não falo,deixo-me beijar, deixo-me levar. Não morri. Ele nem percebe meu torpor, meu vazio. Percebe?
Rosa Cardoso
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Um comentário:
Muito bem escrito, me prendeu, segurei o folego, lindo ,mas perigoso,bjos
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