quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Sui Generis

 David Bekham em publicidade contra a impotência veiculada em 2009
                                        
Recosta-se exausto na cadeira de madeira com assento acolchoado. Respira fundo ao ponto de extrair uma lágrima dos olhos, mas não permite que caiam. Na tela do computador o alerta do programa de conversação instantâneo lhe chama atenção. Pousa a caneca vermelha sobre o descanso na escrivaninha, cruza as pernas repousando um pé sobre o outro e ri, ainda com melancolia no rosto pálido e lânguido.

Há dúvida para iniciar a conversa. Antes que o impulso leve as mãos a alcançar o mouse, para e olha para o lado esquerdo, olhos pequenos, testa franzida, grenha alvoroçada. Fricciona a parte superior do lábio com a arcada inferior de dentes inexplicavelmente corrigidos, brancos, belos. Coça com a mão os cabelos crespos com alguns pontos de lã. Acabara de levantar da cama deixando-a desarrumada. Ergue a cabeça e avista o teto, inspira fundo de forma lenta e racional. Os olhos procuram no azul da parede algo além da luz cintilando a íris. Estala os dedos das duas mãos, expira intenso e revolve a tela.

As piscadelas do programa cessaram, embora permaneça em destaque. Lembra-se do leite com canela na caneca vermelha. Sorve um gole, dois... Quatro e já está frio há horas, ainda que note o dissabor apenas no quarto gole. Toca o mouse, mas não consegue abrir a janela de conversação. Agora um suspiro. Por quê? Uma forte corrente de ar penetra a vidraça entreaberta revoando as treliças. Oh!? Nada além do vento sorrateiro despenteando a pequena sala azul com armários brancos modulados.

O leite. Ali, dentro da caneca vermelha, choco. A tela acesa na área de trabalho cujo plano de fundo remete ao Saara. E seus olhos. Negros como a aspereza do luto. Perfídia de quem apenas deseja o encontro. O intento lhe toma. Faz-se o feito e ri, mesmo inerte ri, conservando-se pequeno o riso, ri de dentro para fora e se deixa levar:

- Oh moleque como cê tá? – Lê a pergunta com a expressão da dúvida. Perdendo-se atrás de uma resposta.

- Oi, tô bem e você?

Nada nos próximos vinte segundos. Pensa com o indicador na iminência de fechar o programa, até se surpreender com uma nova mensagem:

- Por que faz que não me vê?

- Não faço que não te vejo. Só não quero ser inconveniente.

Súbito. Teme perder o diálogo.

- Pois fez, fiquei te esperando.

Novamente coça a cabeça. Sorri e responde:

- Então, tô aqui.

- Tá muito triste nessa foto.

Assusta-se observando a foto apresentada na janela do programa. Fecha-o e abre novamente para certificar-se de que se trata da mesma foto que vê.

- Qual delas?

- Nessa mesma.

- Da boca? Como dá pra saber, só tem minha boca?

- Mas uma simples boca fechada.

- É, acho que eu sou assim mesmo: uma simples boca fechada.

- Abra, eu tô triste.

Não sabe o que escrever em resposta ao que recebe. Pensa, franze a testa forçando os olhos para enxergar melhor o que lê. Não pode ser! Mas está escrito. Pretende seguir sem prerrogativas:

- Por que você está triste? Quando falo eu falo demais, muitas palavras e gosto... isso incomoda você. Não precisa de minhas bobagens.

- Cê não fala bobagens.

- Mas também não falo, ninguém nunca ouve. Ninguém.

- Ouve quando cê fala?

Paralisa. Como assim “Ouve quando cê fala?”. Espanto de quem duvidasse ser o mesmo com quem mantinha diálogo. Suspira e replica:

- Às vezes sim, mas não preciso me levar a sério, Rafael.

- Me chama de novo de Rafael? Adoro ouvir cê me chamar.

Sorri com amplidão, descendo a ponta do nariz em direção à boca, enrugando as bochechas. A diversão inesperada lhe atrai, mantendo-a no diálogo vazio e desencontrado sem idéia do que acontecerá. Eriça para digitar nervosamente as palavras:

- Rafael, como é se sentir imortalizado?

- Sempre quero ouvir você me chamar!

- Me diga, como se sente sendo imortalizado?

- Eu sou para os que gostam de mim.

- Talvez você nunca tenha oportunidade de ler o que escrevi sobre você.

- Pô! Me sinto muito bem!

- Queria saber como você se sente... você está imortalizado em palavras, num ideal de amor impossível, desencontrado... incompreendido.

- Isso é utopia? Minha vida falha e ouve sempre um grito...

Não acredita no que lê, desfaz o sorriso construindo uma preocupação singela e consternada. Tem dúvida se insiste na pergunta, por isso se resguarda no pensamento e tentativa de análise da última frase. Os dedos nervosos impulsionados tentam algumas palavras, mas as deletam. Não pretende ser inconveniente. Não o quer, precisa que ele esteja entregue e necessitado de sua resposta, contudo, ele não responde. Novamente uma segunda tentativa de forçar a questão, por fim se resguarda e suspira fundo.

Levanta-se e vai até a cozinha num balouçar descompassado de pernas lisas e cumpridas. Os pés descalços deixam o assoalho manchado de suor à medida que segue o próximo passo, no tornozelo uma tornozeleira prata com pingente de crucifixo caindo sobre os pés longos e formes. Retorna com um copo d’água pela metade. Ao se sentar na cadeira a camisa do pijama se levanta na altura do cóccix, em que se vêem algarismos romanos tatuados na pele alva seguidos de palavras em vermelho. Um erre delineado se esconde atrás do tecido que oculta o latim de um verso iniciado em ‘D’ no caminho dos pêlos penetrando as nádegas manchadas com leves estrias. Substitui o descanso e digita anedotas na caixa de diálogo encerrada sem que ele entenda ao menos o porquê.


Conto de Túlio Henrique Pereira, publicado no Caderno de Estudos do Discurso e do Corpo - Brasileidade, Subjetividades e Corpo: em torno da literatura de Túlio Henrique Pereira, Marca de Fantasia, João Pessoa, 2012.

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