sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Jesus

foto rafael nolli

1

Senhor, cantá-lo exige prudência.

Senhor, não: Jesus! Prudência...


Mulheres tremem ao imaginá-lo

e homens se contorcem de medo –


se enfurecem por ti. Por ti são

capazes de tudo, com fúria.


Não os quero diante de minha casa,

ou sobre mim, com suas tochas.


Prudência para não despertá-los,

ajoelhados na primeira fila –


bebendo a palavra suja de kolynos,

encharcada de vinho barato.


2

Estavam equivocados sobre a sua palavra.

Sequer leram os livros. Ouviram


de um profissional, ingênuo do latim:

um animal diante do arado


sendo chicoteado por outro animal:

numa estrada reta, sem cruzamentos.


3

E que não fosse por outro animal.

A palavra em si já trás o equívoco:


abades que excederam no vinho e

se distraíram com ilustrações proibidas;


poetas pequenos, insignificantes,

maus tradutores a serviço do estado.


Para cada povo a palavra tem um peso.

Cada uma, sua carga – nada nos diz algumas:


estão na boca diariamente, já sem sabor,

como chiclete repetidamente mastigado.


Algumas não entendemos.

Outras nossa compreensão estraga.


Estão feridas, cobertas de pus,

muitas sequer foram germinadas.


O equívoco (talvez!) resida no fato de

nenhuma ter saído de sua boca.


Gritam, na rua, em seu nome,

algumas que você sequer conheceu.


4

Quando criança, seu nome pichado no muro –

em neon reluzente, gritando na face das igrejas.


Quando criança, sua marca no quadro-negro,

em adesivos no vidro traseiro dos carros.


Quando criança, sua palavra no rádio,

no pára-choque de pesados caminhões.


Quando criança, sua imagem no quadro:

no quarto de minha avó, um pouco vesgo.


Lembrava um dos generais de Hitler

ou um modelo das propagandas de cigarro.


5

Um homem melhor do que eu,

maior que todos nós juntos.


(O que não é grande coisa,

nem fato de extraordinária façanha)


Um homem, ouso dizer. Apenas isso.

Prudência, o poema exige. E me calo.


*

5 comentários:

Márcia Maia disse...

Esse poema é incrível, Rafa. Adoro. Mas isso vc já sabe, né? ;)

Um beijo.

Glauber Vieira disse...

Texto belamente escrito, que atenta justamente para o fanatismo que cega alguns fiéis, não todos, claro.

Contudo, não concord com a parte que fala de maus poetas... Alguns escritores de renome (como Moacir Scliar) apreciam muito a Bíblia, não como livro religioso, mas como obra literária. Nesse aspecto, concordo mais com eles.

L. Rafael Nolli disse...

Olá, Márcia, fico feliz que tenha gostado, você sabe que prezo muito a sua leitura e opinião!

Glauber, meu camarada, agradeço pelo comentário. Concordo contigo em relação ao Scliar! Ele e muitos e muitos grandes escritores e poetas se inspiraram e apreciam a Bíblia, que pra mim é um texto intrigante, e com passagens lindas de uma grande poesia - eu sou ateu, desde sempre. Os "poetas pequenos", no caso, são aqueles que traduziram a Bíblia lá na Idade Média, seguindo ordens, excluindo livros e trechos inteiros que não eram de interesse da Igreja Católica revelar. Muito obrigado pela observação!

L. Rafael Nolli disse...

Em suma, são aqueles que estiveram nas ilhas de edição da Bíblia e que a editaram ao bel prazer de uma ordem estabelicida!

Graça Carpes disse...

"A palavra em si já trás o equívoco..."

Você é fantástico, Rafael!
:)