segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Pastor João


Convicto da missão que o próprio Deus lhe confiara, Pastor João apenas observava, compadecido, os policiais que o conduziam. Acusavam-no de estelionato, formação de quadrilha, associação para fins de tráfico, corrupção de menores, mediação para servir à lascívia de outrem, a lista era extensa. Quanta babaquice. Afinal, o que era a lei dos homens se comparada à Lei do Todo-Poderoso? Jamais esqueceria a noite em que Ele aparecera, na forma de um cabeçudo alienígena verde-oliva, grandes olhos flamejantes, dentro da fulgurante bola de fogo amarela, dizendo, com aquela voz tonitruante, as palavras que mudariam para sempre a vida de João:
- João! Esqueçe tudo o que aprendeste sobre bem, mal, certo, errado, pecado, Céu, Inferno e Purgatório. Queima tua Bíblia. São mentiras, invencionices de Lúcifer, visando privar os homens dos prazeres da vida e levá-los à perdição. Poucos conhecem o caminho da verdade. Mostrar-to-ei. Ouve. Procura um livro chamado Código Penal. Segue as instruções que ali estão. Pratica o que o livro chama de crimes. Assim agindo, alcançarás a felicidade na Terra e a salvação no Céu.
Lembrou-se de sua ingênua audácia, ao questionar Aquele Que Tudo Sabe:
- Mas... Senhor... Tornar-me-ei um criminoso?
- Serás um servo de Deus. Vai, João, combate o bom combate. Não temas, sempre estarei contigo. - respondeu o Onipotente, desaparecendo numa nuvem de fumaça que provocava ardência nos olhos e nas narinas.
Fitou novamente os policiais, as algemas comprimindo dolorosamente seus pulsos. "Eles não sabem o que fazem" - pensou.

Polinter, Base Neves. Acautelado, à disposição do MM. Juiz de Direito da 1ª Vara Criminal da Capital. Os presos, todos crentes, conheciam-no e o respeitavam. Não é todo dia que viam uma celebridade do mundo do crime, inda mais um homem de Deus. Ministrava fervorosos cultos, ensinando às ovelhas o verdadeiro caminho do Céu, que todos conheciam de uma à outra ponta e muitos já o haviam trilhado várias vezes. Conquistou dezenas de almas no xadrez, deixando os antigos pastores a catequizar as paredes. Tudo transcorria bem na Seara do Pastor João, até aquela fatídica noite de 25 de agosto, a noite do eclipse lunar...
Todos dormiam na cela, à exceção de Pastor João, que meditava sobre os intrincados e tortuosos caminhos do Senhor. Viu o pequeno facho de luz surgir na parede, bem em frente ao poster da Viviane Araújo. Recordou-se de imediato. Caiu de joelhos.
- Senhor! Finalmente vieste me socorrer!
O diminuto clarão foi aumentando de tamanho, adquirindo a forma do Deus marciano. Pastor João alternava choro e riso, em seu rosto uma expressão desvairada. Tremeu quando ouviu a voz de trovão:
- João, meu servo, regozijo-me contigo. Vejo que és valoroso. Mesmo diante de tantas e tamanhas adversidades, não titubeaste nem arrefeceste. És valente e constante. Mereces teu galardão. Queres vislumbrar o que te aguarda?
- Senhor, não sou merecedor. Fiz apenas o que me ordenaste. Combati o bom combate, visando ao cumprimento de minha missão. Se achares que sou digno, mostra-me minha recompensa.
O ser verde luminoso, então, soltou uma gargalhada estereofônica, ao mesmo tempo em que suas formas foram se transformando: a pele verde tornou-se rubra, os olhos de fogo enegreceram, surgiram chifres, cauda e cascos de bode. O cheiro de enxofre era quase insuportável. Pastor João contemplava, boquiaberto, o ser venerado que transformara sua vida, transmutar-se na figura do Príncipe das Profundezas, o Tinhoso, o Cão do Pé Preto! Aturdido, viu, na parede, imagens de um filme de terror, saídas de um projetor invisível, cujo protagonista era ele próprio! Viu-se mergulhado em um lago de magma, destrinchado e devorado por demônios alados, suas vísceras lançadas aos cães; viu jacas gigantescas serem enfiadas em seu ânus, viu seu corpo ser corroído por urina ácida lançada por íncubus horrendos; viu sofrimento, muito sofrimento.Súbito, a tela sumiu, o Diabo riu zombeteiro. Olhou para o aturdido Pastor João e falou:
- Te vejo no Inferno, babaca!
Dito isto, desapareceu numa nuvem de fumaça com cheiro de enxofre. Pastor João ficou ali ajoelhado, imóvel, durante vários minutos. Alguém sacudiu seu ombro.
- Ô pastor! Algum problema?
Era Alcebíades, preso por haver assassinado a mulher e a sogra. Após alguns minutos, Pastor João fitou o rosto perscrutador de Alcebíades e ordenou:
- Alcebíades, coma meu cu!
- O quê? Tá doido, pastor?
- Você quer padecer no lago de fogo e enxofre do Inferno? Faça o que estou mandando, coma meu cu!
- Tá legal, pastor. Se é pra me livrar do Inferno, vamulá.
Os gemidos acordaram os demais presos. Pastor João mandou que todos o comessem, sob pena de arder no fogo do Inferno. Temerosos de perder a alma, um a um, ininterruptamente, os presos sodomizaram-no durante várias horas.
Dias depois, Pastor João foi transferido para o manicômio judiciário, onde passa os dias olhando para as lâmpadas do teto, babando e balbuciando:
- Deus é verde, o Diabo é vermelho, Deus é o Diabo verde, Deus é o Diabo. Vinde a mim e meterei meu ferro em brasa no vosso cu. Deus é o Diabo...
Após a internação de Pastor João, os demais ministros do Evangelho, dantes rechaçados, voltaram normalmente às suas agradáveis e rentáveis atividades na cadeia.

Carlos Cruz - 27/08/2007

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Esparsos em maio de dois mil e três

1

Vencendo barreiras e himens,

galgando distâncias e reentrâncias,

superando obstáculos, seios e vaginas,

plantando pênis, semeando porra:

o sexo de ontem faz os homens de amanhã.

2

Elaborando idéias e césio 137,

construindo bases aéreas e área 51,

demolindo pastos, homens e culturas,

plantando urânio, napalm e tecidos bacteriológicos:

o imperialismo de ontem faz os revoltosos de amanhã.

3

Refugiados em florestas, haxixes e cocas,

escondidos em escombros, fuzis e desertos,

falando o latino, o soviético, o molotove,

arando terra invadida, amolando foices no escuro:

todos os caminhos que nos separam da liberdade

{passam pelo cabo Horn.

4

Carregando trouxa de roupas e embargos econômicos,

superando estiagens e dívidas externas,

nós prosseguimos nos fechando.

Levando compras e ordens,

vivendo de especulações, inflações e salários mínimos,

nós prosseguimos nos escondendo.

E não haverá casa, muro ou vala,

não restará refúgio, guetos ou exílios:

e nós prosseguimos atados por correntes e nós.


poema do livro memórias à beira de um estopim

(edição independente, 2005)

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Sobre o desejo


Foto: Geisa Cruvinel


Esse caboclo quer arrancar da minha pele cada gota de suor guardado no inverno. Eu fico esperando bem do jeito que ele gosta: com os cabelos desgrenhados e florida até os dentes, depois de hidratar os contornos que ele sabe passear tão bem.Espalho alfazema pela casa enquanto canto a canção que diz do amor maior, daquele que arrepia até o próprio desejo.Ele me ouve longe, diz que tenho voz rouca agridoce boa de ouvir BOM DIA! (e de deixar o dia bom mesmo).É que esse seu cheiro de mato combina com minha saia levantada e com meu desaguar intenso:barulhinho de cachoeira violenta logo ali,atrás daquela pedra.Sei que tem tanto sol na morenice dele que eu deveria me besuntar inteira de filtro solar.


Mas estou tão ocupada, recortando corações de cartolina.

*

*

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Beleza insubmissa

Pobre do poeta que crê poder tomar da natureza a beleza. Quantos são os que pensam que a escolha de um tema belo garante a criação de uma escrita também bela? Erro essencial. A beleza na escrita é outra.
- Mas poemas sobre o espírito são tão belos. Ou então os que têm flores e pássaros; adoro esses mais bucólicos!
A beleza verdadeira é em essência revolucionária, pois insubmissa. Não importa o tema ou a motivação, pois ela transborda temas e motivações. É insubmissa, pois indiferente e independente dos meios que a produziram. Depois de feita, tem vida própria – imprevisível.
- E o coração, a lágrima e a solidão? Sim, as rimas. E as rimas?
Não há regra para isso, pode ou não haver rimas. Não há garantia gramatical na produção da verdadeira arte. O fato é que se está sob controle não é verdadeiro. Por isso, toda ditadura teme a beleza da arte, mas deseja a plasticidade da publicidade.
- Então era isso! O tal engajamento.
Quem falou disso? Pode ser, ou não. A questão nunca foi essa. Os livros que importam são os primeiros a serem queimados. Não é o tema, é a potência. Se tiver os dois, então... O que interessa é saber que toda beleza verdadeira, por sua simples presença, quebra a ordem previsível imposta pelos determinismos históricos.

THORPO

terça-feira, 21 de agosto de 2007

DE REPENTE

Há muito tempo atrás numa pacata e pequena cidade do interior do Sertão Nordestino morava um amor de garotinha, negrinha de pele sedosa e amorosa como ninguém. Ela vivia encantando o coração das pessoas: Ynaê, filha caçula, irmã de dona Gorgulha que vivia a cantarolar – nesse tempo os pais tinham filhos quando os outros já eram adultos, hoje isso pouco acontece.
Como tudo na vida muda; ao som das músicas e muito bem querida, Ynaê cresceu e mudou. Conheceu Miltinho, seu fiel amigo, mas consigo esmoreceu. Não que Miltinho fosse triste, mas sim docinhos, carinhos e proteção deixaram de fazer parte de seu coração. Agora seus desejos cresciam e se tornavam reais, e no prelúdio em comemoração as festividades natalinas “Asa Branca”, além de ser cantada para ela, significava paixão e um desejo enlouquecedor queimando o peito sem arbitrariedades para o resigno. Queria o mundo solto para amar um menino, enquanto a ela amasse por esse mundão sem cerca todo de Deus e dos dois.
Noutro dia, no caminho até uma matinê na escola Ynaê conheceu Godofredo, menino que para ela – novo na cidade – era perfeito, mas tinha um grande defeito, que era ser namorador. Subitamente se tornaram íntimos e Miltinho não existia mais, pelo menos para Ynaê. A cada dia eles se conheciam, trocavam segredos e se beijaram pela primeira vez. Estavam sempre juntinhos conversando bem baixo no banco da praça.
Os vizinhos e amigos se chatearam, cruzaram os braços e curvaram o pescoço. Não mais careciam de oferecer-lhe carinho nem prosa, nem versos na escola, nem coca-cola no bar do Bartolomeu, pois Ynaê, apesar de apaixonada parecia menina levada que só queria falar de amor e do prazer de conviver com o baeco. E nada do que os vizinhos dissessem ou fizessem a menina se sentia abalada, e estava diuturnamente grudada na barra da calça do torengo. Cabra da peste ciumento, que não deixava livre o passeio do lado direito para nenhum marmanjo tocar o fio de lã da saia tricotada por sua mãe que presenteara Ynaê.
Certo dia, solteirona e despeitada, Gorgulha pôs-se na janela a fofocar com Vivinha, a tia e vizinha despertando inversores cheios de pudores paralelos as leis do viver: “Vai embirar? É lasca ou há de sofrer? É preta com toda glória do brau essa Ynaê. Não pára de abufelar mãinha, vai abufelar a tia e o arraial sofrê. Pensa ser casa de noca, vive pra cima e pra baixo com esse ababacado, pra modo de quê?”, outra vizinha gritava: “Bamburim pebado quem jogá faz o laço, deixa o barco corrê!”
Gorgulha se apossou dos falatórios, saiu apressada até a sacada e em sua mãe foi despejar. Pobre Ynaê enamorada, ao que chegou levou palmadas e no quarto ficou a chorar, olhando as paredes cercando a sala, os três reis magos abençoando a casa, decidiu não mais ficar. Logo fugiu pela janela deixando uma carta no criado da sala onde havia um abajur.
No campo encontrou um cavalo, montou no coitado e Godofredo procurou. Ofegante e dissimulada Ynaê o beijou, abraçando-o e ao apertá-lo lhe contou: “Não podemos nos ver mais meu alvorecer. Quero muito querer, mas não poderemos mais!”. Seus olhinhos brilhavam, sua respiração acelerada, a boca suava como uma garrafa d’água petrificada ao degelo. “Quero amar você Ynaê – dizia Godofredo, cheio de desejo e de bem-querer – não importa o que digam, não pense, só sinta o que queremos viver!”.
E no crepúsculo do nascimento de Cristo, Ynaê questionou o viver, já que o sentido se perdera só de imaginar a distância daquele que lhe trouxera um sentido e o enternecer. Os amantes se abraçaram e assim ficaram olhando um para o outro, observando a noite passar. E com repente o amanhecer não tardou, o dia logo chegou e destemida Ynaê foi à lagoa se encontrar.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Pior

Quem nunca ouviu a clássica frase “eu podia estar matando, roubando, mas não, estou aqui pedindo”, ou então, “é melhor pedir do que está matando ou roubando”. Essas premissas são para muitas pessoas uma espécie de norteador ético. Elas se condicionam a três possibilidades: pedir, matar e roubar. Não passa pela cabeça dessas criaturas aquelas outras possibilidades, que grande parte de nós nos submetemos, o trabalho e o estudo.
Sei que as diferenças sociais existem, sei que o mercado exige horrores de cada um de nós quando participamos de uma seleção para emprego, sei que para muitas pessoas o nível de escolaridade é baixíssimo, mas, gostaria de saber por que existem exceções. Recentemente, aqui no Rio Grande do Sul, publicaram a reportagem de um rapaz que vivia em uma vila de papeleiros, ou seja, o rapaz cresceu em um meio miserável, o pai e a mãe catavam papel para sobreviver. Ele poderia ter adotado as premissas do coitadinho e sair por aí empunhando-as. Ele poderia estar lamentando e hoje ser um ninguém, mas não, ele se esforçou, estudou e conseguiu uma bolsa de estudos. Hoje faz educação física e estágio em sua área. Será que ele é alguém mais especial? Será que em seu lar os valores são outros? Nos habituamos a acreditar que as pessoas que estão em situações péssimas são incapazes de conquistar uma posição de destaque na sociedade. Alimentamos isso com moedas..., aquelas que servirão para comprar a bebida, a cola de sapateiro, aquelas que permitirão a disseminação de ideologias que contradizem a ordem natural das coisas. Para que possam viver em sociedade, os indivíduos precisam desempenhar bem o seu papel, e isso começa quando ocupamos a nossa posição de responsáveis por nós mesmos. Não há como eu, você, nós, sermos responsáveis pela conduta do outro, pelas necessidades do outro. Aliás, abro uma exceção aqui, o Estado é responsável sim pelas crianças desamparadas, pelos idosos que não tem família, pelos doentes que não tem amparo familiar.
Para que possamos buscar o bem comum, temos que evitar ser um mal para sociedade, sendo assim, rejeito esses três verbos: matar, roubar e pedir.
Outro dia, depois de ter trabalhado o dia todo, ter assistido uma aula de metafísica, aquelas discussões sobre ente e essência ainda latejando em minha cabeça, chego na parada da PUCRS e tem uma fila enorme me esperando. Enquanto aguardo o ônibus avisto o mesmo homem de todos os dias, pedindo passagem ou moedas, com o mesmo hálito de bebida destilada, com as mesmas roupas sujas. A moça que está em minha frente não lhe dá moedas, e fala qualquer coisa que, ele irritado responde: “é melhor ficar pedindo do que estar matando ou roubando”. Antes que ele chegasse em mim para me pedir qualquer coisa, respondi impulsivamente: “não roubar e não matar é um dever de todos”. Ele retrucou qualquer coisa, mas aí, a fila já estava andando. Depois fui pensando no que falei... e se ele resolvesse pôr em prática seu norteador ético? Certamente eu seria a sua primeira vitima. Por isso quando escuto alguém falando, “é melhor está pedindo do que estar matando ou roubando”, sinto que tem um bandido em potencial me pedindo moedas, sinto que se hoje ele não rouba e não mata, amanhã o fará quando lhe negarem moedas. Cada moeda dada certamente eles as cobrarão novamente. Irão sempre esperar de nós. De nós que, muitas vezes, formamos delinqüentes. Eu poderia estar matando, estar roubando, mas não, estou aqui escrevendo esta crônica para pedir mais um pouco de atenção com o ser humano. Se uma criança te pedir comida, dê comida, não dê dinheiro. Pergunte o seu nome, quais os seus sonhos, diga a ela que ela pode, diga que ela um dia será alguém importante e só fale em coisas boas. Muitas vezes um bom motivo para “Ser” já é o bastante para alguém alcançar o sucesso.

domingo, 19 de agosto de 2007

Jogos



Você acha que sabe
Com suas armas e jogos
mas deixarei você na linha
perdendo todo o seu tempo por nada

No seu mundo
Você não sabe o que há
Cada um tem que ser o que é
E você tenta manipular

Observarei os seus passos
O movimento do cinismo
Nos olhos da traição
Você se envenena no seu próprio ódio

Eu estarei aqui
Assistindo na platéia
Você perder o seu tempo
E ser sufocado pela sua ira

sábado, 18 de agosto de 2007

Making Off

Sentado, elegantemente vestido com um roupão azul, defronte seu trailer, um Vegueros descansado no cinzeiro, perto da taça de Velve Clicquot, estava ele entretido com a leitura de um de “seus Machados” preferidos: uma coletânea de contos do gênio de Cosme Velho. Costume antigo, durante estas leituras sempre atinava de colocar alguma música que tivesse algo a ver com o que lia. No caso, havia escolhido uma das Polonaises de Chopin. Um mestre deve ser apreciado ao som de outro, pensou. Era de se estranhar, para um incauto observador, vê-lo naquela paz e quietude, de óculos bifocais no rosto, compenetrado no livro e com um semi-sorriso condescendente no canto da grande boca. Ele era uma das personificações da maldade, o ser que somente ao citar do nome, já enchia de medo e pavor aqueles de coração mais fraco; a perfeita definição de um ser malvado, também pudera: era nada mais, nada menos que o Lobo Mau. Eis o motivo da incongruência inicial.
Enquanto me entretinha apresentando o elemento em questão (para usar o jargão policial), eis que uma outra personagem sorrateiramente adentrou os imensos estúdios “Faz de Conta”, onde o primeiro relacionado estava, como já disse, se entretendo com boa leitura. E isto é uma coisa muito importante; a leitura abre horizontes quase ilimitados; Canis lupus da silva (seu nome de batismo) descobrira isto bem cedo. Pois bem, a sorrateira visitante veio chegando de mansinho e quando estava prestes a surpreendê-lo foi agarrada por um par de mãos fortes:
- Ahá! Pensou que podia ludibriar a segurança!
- Calma, deixa eu só trocar umas palavrinhas com “seu” Lobo.
- Você sabe muito bem que mister Lobo não dá entrevistas.
Impressionado com a coragem da garota, uma bela repórter de cabelos negros, ondulados como um dia de mar agitado, possuidora de belos lábios carnudos e uma voz instigante, o astro das fábulas levantou os óculos interessado:
- Pode deixá-la, Arlindo.
- Mas mister...
- Tudo bem, sei que você está fazendo seu trabalho, mas esta jovem também está. E acho que será benéfico trocarmos algumas impressões, nem que seja em off.
O guarda, embora relutante, acatou o pedido. Vai entender estes artistas, pensou enquanto se afastava meio emburrado.
- Olha, não me tenha por uma paparazzi qualquer. Trabalho para o “Além da Lenda Post” e me pediram que lhe fizesse algumas perguntas.
- Você é uma foca, não?
- Como você sabe?
- Bom, como o Arlindo disse, não sou chegado aos microfones ou gravadores.
- Mas isto têm algum motivo em especial?
- Bom, seu comportamento já o demonstra.
- Meu comportamento?
- Claro, já está me interrogando – riu de maneira afável. A garota enrubesceu.
- É, acho que você têm razão. Se quiser, posso me retirar.
- Não, fique. Acho que já está na hora de colocar alguns pingos nos “is”, além de lhe ajudar a dar uma lição ao seu chefe de redação.
- Qual lição?
- Que a peça que ele queria lhe pregar, vai sair pela culatra. Bom, aproveite bem as perguntas, porque elas serão poucas. Aceita uma bebida? – Um sorriso se insinuava.
- Quer dizer que vai me deixar entrevistá-lo?
- Uma pergunta a menos. Suco ou champanhe? Ah, a partir de agora, podemos passar para o modelo de entrevista, assim você poderá se sentir mais à vontade.
A.L.Post - Suco, por favor... Então, como o senhor começou sua carreira?
Lobo Mau - Você, por favor – Após servir o copo da repórter, voltou a acender o cubano.
A.L.Post - Ok, como você começou sua carreira?
Lobo Mau - Deixe me ver. Venho de uma alcatéia grande, do interior, mas apesar de sermos muito chegados e termos basicamente as mesmas vontades, vi que aquele negócio de sair como um lobo solitário, uivando nas noites, até formar minha própria alcatéia era meio arcaico. Decidi me dar um tempo, enquanto aproveitava esta época que é muito importante na vida de um macho alfa. Comecei a fazer teatro por conveniência dos costumes, pois geralmente temos que atuar para vivermos em comunidade, daí para o cinema foi um pulo.
A. L. Post - Mas como um ser tão mau como você conseguiu se infiltrar neste meio?
Lobo Mau - Uma das muitas calúnias atribuídas a minha pessoa neste negócio. A propósito, poderia suprimir este “mau” no meu nome? Chame-me de Lobo, a partir de agora. – O aceno de cabeça da repórter indicou que ela atenderia.
A.L. Post - Mas de onde advêm isto?
Lobo - Bom, em geral, no começo da carreira somos obrigados a aceitar papéis que não nos agradam, ou a fazer alguns tipos de produção que nos envergonham no futuro. É o caso da Ovelha Negra. Na falta de oportunidade, fez uma ponta em um filme pornô, o que lhe granjeou a alcunha pela qual é conhecida. Acho que foi por causa da roupa de couro, da máscara e daquele chicotinho...
A.L. Post – Quer dizer que tudo neste mundo é encenação?
Lobo - Bom, uma boa parte. Mas reitero que somos seres tão normais quanto quaisquer outros.
A.L. Post – Mas e aquela estória da Chapeuzinho e da Vovó? É verdade que assediou a garota durante as filmagens?
Lobo (pensativo)- Um dos meus melhores trabalhos...(pigarro) Veja bem, o que saiu na imprensa na época foi para dar mais visibilidade ao filme. Cheguei, sim, a sair uma ou duas vezes com a Vovó (que na verdade só é mãe), mas como bons amigos, entende? A Chapeuzinho era uma criança na época, seria até um crime. Se bem que, agora, passado tanto tempo, é triste ver alguém que prometia tanto estar atolada em produções um tanto quanto “duvidosas”...
A.L. Post – Que tipo de produção?
Lobo - As da Ovelha Negra... Mas cada um com seu cada um, não?
A.L. Post – E as acusações do Lenhador?
Lobo - Ah, quem levaria a sério um cara que mata árvores para viver? Sou do Greenpeace, tenho sérias reservas ao comportamento daquele senhor.
A.L. Post – Mas o Pinocchio corroborou o que ele disse.
Lobo - Acho interessante aquele cara de pau tomar partido dele. Um sujeito feito de madeira concordar com um madeireiro. Cheira a medo. E olha que tenho faro para isso.
A.L. Post – Falando no filho do Gepeto: Tanto ele quanto a Rainha Má conseguiram se eleger nas últimas eleições. Há rumores que você também se candidataria.
Lobo - Bom, com o nível da nossa política, acredito que os dois estão, como pode-se dizer, “em casa”. Os talentos verbais do boneco (que alguns dizem ser uma marionete, embora eu não tenha uma opinião formada sobre o assunto), mais os poderes especiais da Rainha, dão a ambos ótimas condições para se manterem entre seus novos pares. O que acho difícil é o primeiro cumprir as promessas de campanha e a segunda não fazer desaparecer parte do erário. Mas se assim agirem, não estarão sendo tão diferentes dos que lá se encontram.
A.L. Post – Uma última pergunta: e o coração deste canídeo, como vai?
Lobo - Semana passada fiz um eletrocardiograma, está melhor a cada dia, segundo minha enfermeira particular.
A garota desligou o gravador, após um lento cruzar das belas pernas, agradeceu:
- Seu Lobo, nem sei como lhe agradecer!
Um sorriso largo, que cobriu toda extensão da imensa boca descortinou-se, ouvidos em pé, olhos fixos no alvo, passou um dos braços pela cintura da repórter e deu uma piscadela, das mais safadas:
- Pode deixar isso com o Lobão aqui. Você está em boas mãos...

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Pequena Reflexão

De avião corria o risco de não chegar ao destino; de ônibus o problema eram os assaltos e, de carro, temia pelas crateras nas rodovias.
Resolveu então abrir um livro. Definitivamente, a melhor viagem era aquela para dentro de si mesmo.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Manchete



Bandido estupra e mata anciã. Traficante vende, não entrega e esfaqueia. Parou no sinal e perdeu o carro. Pivete chapado mata por um relógio quebrado. Pedreiro faz sexo com nenê da vizinha. Mais uma rebelião no presídio.


São manchetes diárias dos nossos jornais. Na verdade não são manchetes, são apenas chamativos das páginas internas do jornal. Às primeiras páginas cabem as verdadeiras notícias de destaque: política, economia e esporte. Os fatos corriqueiros de morte e violência, de tão comuns ficam com as páginas centrais. Os acontecimentos só recebem relevo quando o algoz ou a vítima são pessoas de notório destaque. Se o seqüestrado for apenas rico não receberá sequer uma linha dos jornais.É a banalização da morte, a vulgarização do crime. É o cotidiano. Ninguém mais se importa.Os presídios estão superlotados, os policiais não têm formação, os processos percorrem um lento e burocrático caminho, as leis estão obsoletas e se contradizem, sempre há mais uma instância a ser recorrida, a corrupção atinge até juízes. As estatísticas informam que menos de 20% dos criminosos acabam condenados e destes, menos de 15% cumprem toda a pena.O bandido tem a certeza da impunidade. Ao cidadão cabe esperar apenas pela justiça divina. Ao perceber à sua volta um rastro de terrores ela passa a desejar a morte do malfeitor. A morte preferencialmente em julgamento sumário e execução em praça pública.Se não houver uma reviravolta em todo sistema, breve tornaremos à Idade Média e teremos como manchete: Povo brasileiro exige pena de morte.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Dai-nos

A noite corria pela janela
E os anos pelos meus dedos.
Enquanto milhares
Oravam a Ave Maria,
Eu me prostituia,
Com a cara e coragem...
E amontoava o pão de cada dia.
Profana sacanagem.

Que bobagem!



Me

sábado, 11 de agosto de 2007

ebook Estrada para o Infinito e ezine BDE

Lancei, em 03/08/2007, o pulp Estrada para o Infinito, em homenagem ao BDE.
é uma história louca, dum sujeito de moto que acaba numa vila de Amazonas. o problema é que houve o apocalipse e o mundo está infestado de mortos-vivos.
com prefácio de Me Morte
Baixe o ebook aqui.







O Bar do Escritor completou dois anos de discussões, brigas, confusões e xingamentos por conta da bebida literária que é servida em nossas mesas virtuais. Tanto debate criou fortes laços de amizade entre os membos desta comunidade do Orkut. No E-ZINE especial estão publicadas as Histórias do Bar, os textos em homenagem (?) ao BDE. São poemas, contos e crônicas contando um pouco como é ser um dos nossos bebuns de letras. Uma experiência única, alguns nunca se recuperaram.
Conheça tb o BLOG do BAR.

A palma da mão branca


A palma clara da mão
faz do homem irmão
e esbofeteia com precisão

Em todos é branca
mas a igualdade manca
falta a unidade franca

Esta branca mão
é paz
ou rendição?

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

in.quie.ta.ção

Me enlace
Me abrace
Enquanto ainda sou moça e
me torça o pescoço
(não precisa ser com força,
basta quebrar o osso)

não quero me ir de cansaço
nem quero me ir de doente
(de fígado, de rim, de baço)!
prefiro ir de repente.
não quero morrer numa cama,
sofrendo com a dor me fazendo calo
que seja de queda
de quebra
de tiro.

prefiro morrer de estalo
faz bem mais
o meu estilo.

quero um piscar pra morte breve
que não passe
do espaço de um soluço

pra mim tem morte certa.
não quero morrer na siesta,
prefiro morrer de susto.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Invencionice Literária

Não sou como fui sempre. Talvez esta inquietude revele o que existiu debaixo deste ornamento esquálido; este corpo que se sustenta na descrença e incompreensão do fato de ser um vivente a caminhar sozinho junto à multidão de almas mutiladas.Abro mão da vida plausível que cultivei ao longo dos anos; funcionário público a despachar documentos na repartição, fazendo e refazendo relatórios, emitindo e omitindo dados, manejos necessários à profissão, para desvelar da loucura de ser escritor.Resolvi assumir a possibilidade de morrer de fome e, mesmo assim, tentar escrever uma história que se sustente por si só. Vivo minha solidão na intensidade necessária, sob a luz artificial, acompanhado de um ou outro gole de vinho seco que me seca a alma ainda mais. Sinto o vacilar do pensamento e, este vacilo se propaga, conduzindo as mãos ao ato incontinente de “masturbação filosófica” que me levaram a mundos e profundezas que desconhecia além das palavras.Converso e desconverso em meu íntimo. Imprudência. Sou assim, imprudente em atitudes. Precipito em decisões ilógicas e amorteço a queda em crenças vãs. Adultero minha credencial de literato para ter direito à prostituição gratuita, onde poderia chupar ossos e bucetas sem medo, nem vergonha. Sem o horror de ser destituído do Prêmio Nobel de Literatura e, continuar condicionado a escrever “romance de quinta” que enche os olhos das leitoras suburbanas e tupiniquins que desconhecem a valia dos clássicos. Nem dão à mínima se faz sentido ou não. Querem mais é se deleitar naquelas páginas melodramáticas que sempre terminam em final feliz.Em minha astúcia de coveiro e semeador, semeei discórdia por onde passei. Reinventei a escrita, rabiscando murmúrios de delinqüentes e transviados, enxugando os pratos cuspidos que tantos outros puseram de lado. Hediondo me tornei e, odiado firmei meu pacto de só dar ouvido aos loucos, irremediados do povo. E, assim fiquei em minha costumeira aflição de temer a morte e o itinerário que se constrói durante a vida. Meu futuro previ inusitado, mas, como prever o além vida(além morte)? Não há como julgar; aqui se faz aqui se paga. E minha conta a pagar já estourou o limite.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Tome Nota

Comprar travesseiros novos: pra perceber como a vida pode ser gostosa.
Tomar três banhos por dia: pra sentir que a natureza não mendiga suas posses.
Gritar dentro do armário: pra ouvir os ecos de nossa própria consciência.
Chorar dentro de um copo: pra não esquecer os motivos que nos emocionam.
Massagear os pés: pra perceber que somos nós mesmos que nos impulsiona para frente.
Despejar o lixo: pra levar pra fora as dores e os males da alma.
Sorrir para o gato de porcelana: pra lembrar que você é uma pessoa normal.
Ler bulas de remédio: pra descobrir como somos frágeis.
Tome nota do que você precisa fazer, mas faça apenas o que te faz melhor.

domingo, 5 de agosto de 2007

Sermão do Tempo

Enquanto eu espero o tempo passar,
O tempo passa por mim,
Mas eu não o percebo.
Quando ele me diz:

- Caro infeliz,
Esquece-me!
Apaga-me da tua mente,
Pões fora teu relógio;
E abraças as horas
Que correm o seu curso lógico.
Não queiras fazê-las parar,
Nem, muito menos, mais rápido andar,
Apenas por um pedido
Infantil, desesperado,
Teu.
Saibas que elas não se curvam
Nem ao pedido despótico
De Deus.

Acaba-se assim o sermão do tempo.

E eu, que apenas percebi
A linguagem suave do vento
Espero-o ainda.

Ele se cansa e passa.
Infeliz por sua língua
Incompreendida.
- fado de toda
linguagem divina -

André Espínola

sábado, 4 de agosto de 2007

Máscaras

Máscaras - Nicolas Delgado

resgatei pedaços
de máscaras deixadas no tempo
por restos rasgados de eus do passado
sentimentos postergados
folhas dilaceradas,
molhadas por tempestades escuras
queria navegar
pela razão que flutua
em mares além do horizonte
deixada em sustento ao pranto
que cegou-me os olhos
como vendas de encanto
em desatinado reencontro
floresci como hibisco roxo
e fiz-me exalar perfume ao vento
serenando corações petrificados
ofereci alento
hoje tenho a máscara do contentamento
que pulsa num sorriso
esbanjando adolescência
de saber-me livre das amarras da existência

Caroline Schneider


quinta-feira, 2 de agosto de 2007

A fábula do vidro e do tijolo

A fábula do vidro e do tijolo
pela vidraça vê-se o muro
vê-se furos
no paladar!

não há o que se esconda
e se oponha
à dor de fronha
e a amores de chafarizé

tudo tão caro
que o metal não pode pagar
beijara teus tijolos
e ainda trazia na língua
os esporos alheios

enganando-se cotidiano
e os olhos secos se fecham
na esperança da chuva
da fonte na praça central.