sábado, 27 de novembro de 2010

lágrimas












triste


a


cidade


despe-se


bélica


ao


pôr do sol


(


nem Rio


nem


mar de


Janeiro


)




- Graça Carpes -





quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Impiedoso poema felino



Quando os gatos se acabam debaixo da roda dos carros,
ou se matam na boca de cães domésticos
– !equilibristas insanos de muros de quintais! –
eu me nego a dormir em paz.

Não por amá-los,
pois desde sempre os odiei
com seus roucos miados boêmios:
insuportável ruído noturno perante o canto dos grilos
e dos galos,
diante do pio das corujas
e o alarme dos carros arrombados.

Não por compadecer de sua extinção.
Lamento, antes, o som de grandes vira-latas
feito saco de ossos e merda espalhados no asfalto
(quando se pode somar à suas tripas e pêlos
uma boa dose de urina ou ódio
e nada alterar em sua desgraça).

Quando os gatos aniquilam-se
em pedaços de carne envenenada,
jogadas por sobre o muro ou deixadas na sarjeta,
eu me sinto diferente de quando
as últimas aves se desfazem nos pára-brisas dos ônibus,
ou de quando o gado confinado
se esquece de sua natureza
e pensa a si mesmo como mais um dos postes da cerca.

Não por prezar-me da sina dos gatos,
pois antes de tudo amaldiçôo-os categoricamente –
esquecido do bom senso, dos modos ou da etiqueta.

Não por indignar-me de restar a eles,
e a sua classe, a corda-bamba dos muros:
por ideologia sempre acreditei ser o mundo dos homens
e de seus fantasmas,
dividido em partes iguais aos primeiros citados.

Quando os gatos são substituídos por seres genéricos,
animais exóticos ou bichinhos de pelúcia,
que não trazem mentira, asma ou alergia ao lar,
eu me nego a dormir em paz.

Não por estar a par dos últimos avanços da medicina,
das técnicas homeopáticas, dos tratamentos alternativos,
das UTIs e do xamanismo em última instância,
mas por saber o restante intratável.

Na noite em que os gatos são subjugados pelas ratazanas
e seus corpos devorados em belos ensopados,
ou servidos em noites de gala em espetinhos de bambu,
nas noites em que crianças amarram bombinhas em seus rabos,
ou os lança aos fios de alta tensão para ver os fogos,
eu me nego a dormir em paz...

Porém, eu durmo.



* do livro Comerciais de Metralhadora

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Escuridão

imagem: Your forgiveness

Meus restos espalhados pelo chão, pode ser meu sangue, não sei. Sei que vejo tudo em vermelho. Posso estar ficando cega, talvez, ou não. É só uma luz. Mas não há mais luz, janelas lacradas. Apenas um resquício teimoso da luz da rua tentou entrar pela fresta da porta, mas consegui detê-lo. Pernas juntas demais, paradas. Um pé sobre o outro. Mãos muito secas. Quero arrancar os cabelos, que não têm vida alguma. Pudera, eu mesma não tenho. Não tenho ar, não tenho vontade de respirar. A TV ainda está ligada, mas fora do ar não sintoniza canal algum. Em transe, fico horas mirando as listras coloridas na tela. Meus sentidos vão caindo um a um, contra a minha vontade. Desafio esse estado vegetativo. É uma fobia de casa vazia, de janela aberta, e de tudo que não temo, só tenho medo da própria fobia. Remédios que dopam. Sem forças, sem nada. Existe um pacto com o fim, um mau agouro, é um dia ruim para sorrir, mas há tempos não o faço. Essa distorção da realidade me dá sono, mas o sono não vem. Não domino o peso de minhas pálpebras. Concentro forças que não tinha tentando levantar a cabeça, para guiar o corpo, e o corpo não quer se mover. Eu não quero me mexer. Mas não me obedeço. Não ouço os palpites do meu inconsciente. Não ouço nada com os ouvidos cheios d’àgua. Morder o canto da boca, a dor causa torpor, e o torpor dói. Ironias... uma fisgada forte entre os dedos, não assusta mais, há tanto que está comigo! É como um precipício, o parapeito de um edifício muito alto, sem anseios de me jogar. Razão de costas para a emoção, real e abstrato ligados. Loucura? Lucidez? Nada. Só madrugada escura e neblina densa. Dá imunidade contra a insanidade e legitima a dor. Sonhos?!? Não os tenho há anos. Planos, tão raros e loucos, que os mantenho escondidos na última gaveta do pensamento. Infalível como um canto de sereia, uma melodia fina me envolve, e arfo lentamente buscando uma anestesia que me faça adormecer. Desisto da hipnose da lua e justifico como falta de ar a dor que passa a esmorecer meu peito. Não sei o nome certo... não sei. Ela se faz presente, onipotente, todo o tempo, mesmo com a boca fechada, mesmo com ouvidos deixados para trás, e com narinas abrasadas, me retalha, e meus restos ficam por ai. É um escuro sem fim, é um fim sem querer. Diálise lenta a torturante madrugada adentro. Gota a gota, um sangue cinza, extraído de uma vida em preto e branco.
*** Também escrevo aqui e aqui ***

sábado, 20 de novembro de 2010

Um mundo perfeito


Árvores sempre verdes. Repletas de flores e frutos. Eterna primavera. Quase verão. Sem inverno. Todos saudáveis e belos. Jovens e ricos. Sem exceção. Aboliu-se doenças e lágrimas. Mesmo as de alegria. Baniu-se a morte e a paixão. Aos poucos, todas as emoções foram sendo esquecidas. E a paz se instalou nesse mundo perfeito. Onde se vivia a salvo da vida. Sem amor. Sem dor. Sem morte. Sem paixão. Sem partidas. Sem medo. E todos foram mediocremente felizes. Para sempre.



Márcia Maia

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Have a Nietzsche Day

-Olá, bom dia.
-Só se for pra você.
-Quero um café sem moral e um pão de queijo de verdade subjetiva. Bem mentiroso, se tiver.
-Sinto muito, senhor, só tenho sonhos de luxúria.
-Ah, pode ser. Deus não existe mesmo.
-Discordo, mas enfim. São 3 Reais.
-Pague você. Cada homem depende de si mesmo.
-Desculpe, senhor, mas não tenho troco pra nihilismo.
-Mas...aqui não é a padaria do Nietzsche?
-É sim, mas sabe como é, a globalização. A comida é dele, a loja é do Heidegger, mas quem cuida da grana é o Husserl.
-Tinha que ser judeu.
-Antes judeu que existencialista.
-Não entendi.
-Não é pra entender. Pague e dê o fora. Antes que eu chame os positivistas.
-Ei, calma lá, tô saindo.
-É cada um que me aparece!

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

sábado, 13 de novembro de 2010

desaforismo 9 - Do amor platônico

.
o amor platônico é sempre verdadeiro,
até (ou principalmente) quando não é.

  .

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Salgueiro-chorão

Um tanto inseguro

curvava-se, desiludido

diante dos menores desafios


Enraizado em apatia,

quanto mais ele crescia,

mais perto ficava do chão



quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Traços



Linhas temporais
pedaços marcados
passos vividos
desenhos tatuados

No espírito, sob
Na pele, sobre

Imagens difusas
cenas antigas
cidades novas
plateias repetidas

Caminho torto, certo
Atalho incerto, reto

Jogos de guerra
migalhas no caminho
batalhas perdidas
labirintos vencidos

Rugas de choro, por
Vincos de sorriso, para

Traçando histórias
destinos traçados
traços perfeitos
contornos tracejados

Vivendo, traçadas linhas
Fazendo, delineados traços

Joakim Antonio

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

conto vaginal

Minha provável simpatia com o nada mantém meus lábios murchos, neste corpo cuja capacidade de se estimular já foi perdida. Ultimamente os rijos membros que em mim adentram já não causam assombro algum, este mesmo que se faz necessário para que de fato eu me interesse. Formas diferentes, tamanhos variados e minha insatisfação equipara-se à monotonia do momento, uma reunião formal em que o encontro se dá por convocação e não convite.

Embuste. Uma arte tão sórdida e tão ácida que me arrepia, mas se somente isso me excita, creio que sou o mais sádico e preguiçoso dos órgãos, pois talvez meus dois únicos desejos sejam o vislumbre do desapontamento – duas burcas negras, perdidas num céu obscuro, a velar minhas reações à distância enquanto a língua procura desesperadamente umedecer um cáustico deserto –  e um banho morno, depois de fugir deste embaraçoso momento.

Pêlos finos ou grossos, todos se mostram bastante interessados quando me veem adornada com enfeites, mas a verdade é que não me lembro o que fazer quando despida. Enrugo-me e fico tímida, a ponto de me ocultar por detrás das carnes e o que sobra é uma luta, sim, uma batalha, tentativa sôfrega de reanimar um corpo morto.

Ultimamente meus deleites têm sido coisas de velhinhas e suas maquinarias perfeitas, observando os namorados na rua. Contudo, escondida, me enlevo com outro tipo de manipulação. Não sei se os paus antes comiserados de meus amigos andam fugindo em surdina, como ladrão que desiste do roubo, mas a verdade é que não ligo. Me entrego ao alcool e à insatisfação e fumo um cigarro doce, cujo aroma é mais saboroso do que qualquer coisa viscosa descendo a garganta.

Viro pro lado e nem peço para fecharem a porta, pois já o sabem. O amargor que lhes fica na boca é como veneno, amarra. Devem ir lavar-se, já imaginei, pois são leves como plumas depois de uma tempestade de necessidades. E eu fico morta, olhos semi-cerrados, a ver a parede do meu quarto que pede, há meses, um novo reboco.

domingo, 7 de novembro de 2010

Canção de ninar a menina rosa e flor




para Ana Izaura

vem me ninar, amor;
com teu calor que sei
ter o ardor de quem
se abre feito flor.

Vem, menina, na dor
que sempre me detém
quando estou tão só.

Vem me ninar, meu bem;
com uma canção de cor
que vem além do ser
em seu refrão de amor.

Vem, menina em flor,
sorriso sem igual
fazer um vendaval
neste meu coração.

sábado, 6 de novembro de 2010

Poëta fit

Nasci poeta nada, mas me faço
De fácil para ser predicativo
Bem antes desse verso, nasci vivo
Um bípede sem pena nem compasso

Poemas se cometem, eu permito
Que um rito faça parte desse fato
Mas nato não sou nada, nem me mato
No meio das palavras, dentre o dito

Nasci sem vez nem vício, analfabeto
Bebê, não soube código secreto
Sem voz nem compromisso co destino

E nem foi prumo, plano, minha meta
e nem concebo pronto: ser poeta
por força de algum gene, dom divino.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Ampulheta cega






















Grãos na cintura passam cálidos
Ah, hora, é fissura no furo da proa
Idolatra Argos e hinos vãos, entoa
Crê, mesmo tendo olhos inválidos

Nunca lambeste o tempo em estado,
Ah, areia, é volátil, pelo centro escoa
Impunemente, a pária lasciva ecoa,
Como milhões de pingos sem reinado,

À primeira vista se apresenta formosa,
Naquela luta do não esvair-se pela greta,
Ao fazer-se livre, alforriada, jaz saudosa

Cada minuto manco traz uma muleta,
A jura presa em promessa duvidosa
Que fere, mata nessa imutável roleta.