sexta-feira, 27 de junho de 2008

A Alcova Sagrada


Os dias eram todos iguais. Sempre iguais. Iguais do início ao fim. Um após o outro. O mesmo. Sempre. Um dia, outro dia, mais um dia. Acordar, comer, cagar, ver Super Xuxa Contra o Baixo Astral, convulsionar-se, levar choque, escutar funk, tomar injeção, dormir. Depois acordar, comer, cagar, assistir Super Xuxa Contra o Baixo Astral, convulsionar-se, levar choque, ouvir funk, tomar injeção, dormir. Estavam a ponto de explodir. Não agüentavam mais a pressão. O sistema. A pressão do sistema opressor, o manicômio opressor. Os criadores do sistema eram loucos, todos loucos. Bando de sádicos lunáticos. Hospitalários hospitalares nada hospitaleiros. Açougueiros cerebrais devotos da Santa Lobotomia, era isso que eles eram. Mas, ao contrário do que "eles" pensavam, "eles" não eram mais fortes que eles. Iriam escapar. Precisavam escapar. Afinal, não eram malucos, aquele não era seu lugar. Eram Rubicundo & Nauseabundo, a dinâmica dupla, os eleitos, os contrafeitos, os rarefeitos, os arautos perfeitos da perfeita deidade, o supremo deus do bem, do mal, do aquém, do além, do sol e do sal. O sempiterno sem terno. O imorredouro não-nato.
Raramente se viam, mais raramente ainda se falavam. Tão perto e tão longe. Separados por paredes. Grossas paredes. Espessas. Toneladas e mais toneladas de argamassa dura sem som. Isolamento. Isolamento acústico. Silêncio rompido só por seus gritos. Gritos de angústia. Opressão. Dura opressão. Implacável opressão. Não era nada fácil a vida na casa dos loucos, na prisão dos loucos. Mas Rubi & Naus tinham planos. Pacientemente aguardavam, chegaria o momento de pô-los em prática.
Certo dia, durante mais uma sessão de tratamento eletroconvulsivo, o enfermeiro, que flagrara sua mulher divertindo-se com alguns amigos no doce aconchego do lar, decidiu descarregar sua fúria sobre o pobre Nauseabundo. Girou o botão do aparelho até a máxima potência. Nauseabundo sentiu o cérebro fritar, o cheiro de merda causticada tomou conta da pequena sala. Pensamentos confusos alternavam-se em sua cabeça escaldada: explosões de crânios, duendes verdes, astronautas, papas, aranhas, bocetas, teoremas, morcegos, o velho da aveia, paquitas e monstros do pântano compostos de bosta. Antes da inconsciência, veio a grande viagem astral atemporal: seu espírito ou alma ou ectoplasma ou etérea anti-matéria desprendeu-se do corpo e, rapidamente, atravessou as paredes, feito o homem da quarta dimensão. Esquadrinhou o manicômio, sala a sala, até finalmente encontrar o que buscava: o bom, velho e rubro Rubicundo, que dormia a sono solto. Houve imediata empatia espiritual. Qual um magneto irresistível, a alma de Nauseabundo atraiu a de Rubicundo, que num rompante projetou-se, fundindo-se ambas em incorpórea forma alada.
- Mas que porra é essa? - indagou, sonolenta, a alma de Rubicundo.
- Sou eu, seu amigo Nauseabundo.
- Ah, tá. Mas por que não te vejo? E que calor desgraçado é esse que estou sentindo? Por que estou tão leve? E esse cheiro de merda frita? To be or not to be?
- Devagar, amigo velho. A paciência é uma grande virtude e um jogo enfadonho presente em quase todos os microcomputadores domésticos. Como diria o meticuloso, intrigante e performático Jack, The Ripper: vamos por partes. Vossa Excelência não me vê porque somos um só. O calor é a forma de inserir energia térmica entre dois corpos que se vale da diferença de temperaturas existente entre eles, conquanto o calor que não faz sua alma suar porque sabidamente as almas são desprovidas de glândulas sudoríparas deve-se à eletricidade que escaldou o receptáculo composto de carne, ossos, músculos, sangue, água e bosta de propriedade do amigo que agora prazerosamente vos fala, o que explica de forma cabal e insofismável sua outra pergunta relativa ao futum. Quanto à leveza, isso tem a ver com metafísica, matéria imaterial, energia vibratória espírito, essas coisas legais, interessantes e sem as quais não podemos viver. Por derradeiro, a pergunta proferida no idioma derivado dos três dialetos falados pelos anglos, saxões e jutos, peço ao conspícuo amigo que se reporte a Sir William Shakespeare quando encontrá-lo casualmente no além-túmulo, entre uma e outra hosana à deusa e cantora Rosana ou ao (todo ele) Todo-Poderoso.
- Ah, tá. Entendi tudo. E o que faremos agora?
- A viagem.
- Sério? A viagem?
- É. A viagem.
- Puta que pariu! Sempre quis fazer a viagem.
- Vamos, então?
- Putz. Já é.
Olhos cerrados, concentração, força, evacuação de fluidos cósmicos e a viagem de volta para o passado. Anos, dias, horas, minutos, segundos atravessados, comprimidos, fragmentados tão-somente em um átimo sublime. Eram novamente crianças. Naus tinha seis anos e se chamava Astolfo; Rubi completava sete anos naquele dia e seu nome era Rodolfo, a faixa tremulante na fachada da casa não deixava dúvidas quanto a isso: "FELIZ ANIVERSÁRIO, RODOLFO! PAPAI E MAMÃE TE AMAM!". Seus pais não queriam que brincassem juntos, a amizade cultivada em anos e anos de boa vizinhança não resistira a um empréstimo não honrado. Mas crianças são crianças e nada entendiam nem queriam entender, nada sabiam nem queriam saber. A surpresa deu lugar aos gritos que deu lugar aos solavancos que deram lugar à punição quando seus austeros genitores os surpreenderam fazendo meias com as agulhas da vovó. O menino Astolfo, imerso durante seis dias no tanque número um do depósito municipal de tratamento de esgoto, onde papai trabalhava. Vez ou outra, emergia a cabeça para respirar e lia o grande cartaz: "ESGOTO É VIDA". O garoto Rodolfo também teve um castigo exemplar: nu, maçã argentina na boca, corpo todo pintado de vermelho (o pai era torcedor fanático do América carioca e fissurado em tomates, morangos e Brasinha), ficou vários minutos assando no forno industrial (papai também era um gourmet, um chef de cuisine refinadíssimo e requisitadíssimo, mesmo colando meleca no "coq au vin", escarrando no "blanquette de veau" ou limpando os vasos sanitários com as "cuisses de grenouilles"). Astolfo e Rodolfo nunca mais seriam os mesmos, as experiências mortificantes foram extremamente edificantes. Eram novos homens, transformados, super-poderosos, super-homens. Não mais simples, comuns, meros seres viventes humanos machos. Não mais Astolfo e Rodolfo. Doravante, a humanidade caótica e decadente conhecê-los-ia por "Rubicundo & Nauseabundo", o vermelho e o fétido, o sangue e a merda, os portadores do archote encarnado e da latrina dourada.
Alguém premiu a tecla RW. Hora de voltar, a viagem chegara ao fim. Nauseabundo estava de volta à mesa de eletrochoque. Agora dotado de sobre-humana força, arrebentou as correias e as correntes, rachou o crânio do enfermeiro na parede que veio abaixo com dois socos. Resgatou Rubi, libertou os internos, fez arremesso à distância de funcionários e médicos, entregando alguns aos antigos colegas que fizeram divertidas experiências com bisturis, tesouras, craniótomo, drill pneumático, desfibriladores, eletrochoque e outros instrumentos e equipamentos interessantes.
- Tudo pela ciência! - exclamou Super-Nauseabundo.
- É isso. Os fins justificam os meios. O que representa o sacrifício de alguns poucos quando o que está em jogo é a salvação de milhões?
- Só. Disse tudo, Big Red. Sabe de uma coisa, queria fazer algo que não faço há muito tempo.
- O quê?
- Espremer os furúnculos da sua bunda.
- Oh, sí! Exprime los diviesos de mi culo, apestoso amigo.
- Volve.
Furúnculos espremidos, erupções de pus amarelo, desejo recíproco saciado, sorriso nos lábios, a dupla iniciou novas maquinações divagatório-filosóficas.
- Andei refletindo sobre a importância do nobre Marquês de Sade para a filosofia, a psicanálise, a política, a religião e as artes. - falou Nauseabundo.
- Sério? Mas ele não era maluco?
- Não. Malucos são os outros, aqueles que o detratam, vão à missa, engolem os pedaços de Cristo, arrotam a palavra dita de Deus, comem as próprias filhas, almoçam alegremente o frango de domingo com o dedo mingo enfiado no ânus e apregoam aos quatro ventos sua fé inabalável no Onisciente.
- Lembro de masturbar-me lendo os livros dele. Simpáticas as personagens Julieta e Justine, certamente elas foram para o Céu.
- Decerto. A libertinagem e a perversão são o caminho do Paraíso Divino.
- Que tal empreendermos a busca?
- Eia.
Sade's Club. Rubicundo é açoitado pela dominatrix gorda gargalhante, enquanto Nauseabundo leva um grande consolo na bunda e é lambido por coprófilos ensandecidos. A orgia é geral. Sexo, heterossexo, homossexo, zoossexo, látex, urina, esperma, excremento humano e animal, dor, sangue, alguém morre, necrossexo.
- Alvíssaras, Mr. Red! Estou prestes a ver a Luz. Acho que é essa coisa em meu reto, dói pacas!
- Sim, também vejo muitas estrelas. A Santa Vergasta da Santa Mulher Obesa Vestida de Negro mostrar-nos-á o caminho.
- Vejo aproximar-se o zênite.
- Dois.
Orgasmo simultâneo. Depois outro. E mais outro. Bacantes fanáticos, em devoto frenesi, rendem-lhe louvores. Da parede, o marquês pictórico, com seus gulosos olhos, a tudo aprova. Satisfeito, sorri.

Carlos Cruz - 09/06/2008

terça-feira, 24 de junho de 2008

DIVERSOS AFINS

Tela de Maurice Vlaminck




Meus camaradas, é com muito orgulho que encontro hoje um poema meu na edição comemorativa de dois anos da revista eletrônica Diversos Afins. Se trata de um dos melhores trabalhos sobre literatura em circulação nesse país: é o típico trabalho que qualquer escritor se orgulha de participar! Convido a todos para darem uma olhada nessa edição:
http://www.diversos-afins.blogspot.com/
Abraços!

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Das Descobertas


Arrumando minha casa de dentro juntei estilhaços de um tempo em que, cansada de sóis vazios e dessas tempestades de agonia, pra esquecer um amor antigo, arremessei meu coração contra a parede. Eu descobri que algumas pessoas se juntam não por afeto, mas por tristeza encomendada. Que certas coisas que deveriam afastar, às vezes aproximam.


Quando arrumei minha casa de dentro tinham muitas declarações de amor de gente que já não me amava mais pelo caminho. E quando eu estava prestes a começar uma vida nova, tropeçava nesse passado e nos referenciais antigos e voltava para lá que era um lugar aparentemente mais seguro. E ergui tantas paredes rabiscadas pelo medo.


Descobri, quando abri as janelas, que uma chuva muito forte também tem som de aplausos. Que na pauta dos meus lábios só cabem palavras macias. Que há que se beber do outro também a fonte de idéias para que tudo não se resuma num encontro incandescente de peles porque devemos explorar todas as qualidades do desejo.


Eu descobri que tenho um jeito de gostar exagerando os fatos e que a ficção é o que mais participa da minha realidade. Mas que sempre fica um rastro na minha pele se alguém se demora nas carícias. E que não se pode ter a força de uma represa retendo seus próprios líquidos.


Quando arrumei minha casa de dentro eu descobri que essa é uma tarefa infinita. E há que se reordenar as coisas incansavelmente pra se ter espaço pruma nova cor. E que uma boa base impede um desmoronamento, mas que a implosão da estrutura inteira, às vezes, é a coisa mais sábia a se fazer em determinados momentos.
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Marla de Queiroz

domingo, 22 de junho de 2008

Um homem bem-sucedido


“Aquelas poucas notas serviriam pra exorcizar toda humilhação. Com as mãos irritantemente tremendo, tirou do bolso o pequeno maço e o estendeu para que ela o tomasse.”

“- Po... po... pode conferir, tá... tá tudo aí. – Que raiva que ele sentia. Tinha ensaiado tanto essa curta frase e agora gaguejava desse jeito!”

“Uma, duas, três... estava realmente tudo ali. O valor combinado. Sentiu um certo orgulho depois que ela conferiu o dinheiro e o guardou na bolsa. Estava agora um pouco mais confiante. Ela precisava de seu dinheiro. Pouco mais de um minuto após ele tirar as calças, tudo estava acabado. Ela se levantou, vestiu a calcinha e, sem que uma palavra saísse de sua boca ou expressão dominasse sua face, saiu do quarto.”

“Um misto de satisfação e medo o tomou. Vestiu as calças e apressadamente também saiu do quarto e desceu as escadas em direção à rua. Sentia-se forte, poderoso. Aquela mulher linda, aparentemente intocável para um garoto de treze anos, havia trepado com ele... bastou um punhado de dinheiro. Aquelas garotinhas que o desprezavam não chegavam aos pés dela. E daí que seus colegas tinham namoradas e ele não? Nenhuma tinha o corpo tão belo quanto o da vadia que acabara de foder.”

“Ali, naquele quarto, entendeu o que era preciso para nunca mais se sentir ridículo - teria que ganhar bastante dinheiro. Quanto mais, melhor. E toda sua vida foi dedicada a isso. Estudou para o vestibular pensado na grana que ganharia; acordou cedo para ir ao escritório, dia após dia, calculando quanto receberia pelas férias vendidas; fez e rompeu amizades de acordo com o lucro que imaginasse obter ou perder com elas; casar-se-ia por dinheiro se tivesse qualquer atrativo além de seu próprio dinheiro, mas não conseguindo atrair mulher alguma com posses iguais ou superiores às suas, casou-se por covardia mesmo, medo de envelhecer sozinho.”

“Quando chegou aos quarenta, percebeu que estava bebendo demais, que era horrível acordar para ir trabalhar, que sua esposa era uma estranha e seu filho um pequeno idiota... que um segundo após gozar na cara de uma nova puta, tudo perdia o sentido e chegava a sentir falta de ar, como se a vida pudesse ser perdida assim, por descuido, por não ter respirado da forma certa. Tinha medo que roubassem seu carro, via em cada moleque ‘malabarista de sinal’ ou vendedor de balas um potencial assassino, começou a beber pra poder ir trabalhar. Foi ao psiquiatra e pediu:”

“- Um pouco de paz, por favor! Eu pago!”

“Pequenos comprimidos que pelo peso e custo valiam, talvez, mais que ouro. Engolia-os conforme o psiquiatra indicara e as coisas melhoraram: sorria sem entender o porquê de fazê-lo, tremia menos e não tinha mais tanto nojo da esposa nem ódio do filho.”

“O que fazer de sua vida aos 45 anos? Comprou uma Harley e algumas jaquetas de couro, pagou putas mais caras, chegou a tomar coragem pra assediar algumas mulheres mais novas sem pagar diretamente para possuí-las (um jantar, uma viagem, uns presentinhos, apenas isso, nada em “cash”!), mas sempre que tentava se aproximar de alguma mulher mais interessante ou inteligente era tratado como o garotinho ridículo que julgava ter deixado de ser há tanto tempo. Isso dava uma angústia tremenda, mas nada que mais comprimidos, putas caras e álcool não dessem um jeito.”

“Com a idade, somou um pequeno comprimido azul aos que ingeria diariamente e, com isso, orgulhava-se de ao menos uma vez por semana comer uma garotinha com menos de 25 anos de idade. Um ano após se aposentar, teve um derrame. Nunca mais foi o mesmo. Mas o que o matou realmente foi aquela queda ao tropeçar na calçada em frente de casa, na manhã de segunda-feira.”

“Espero que perdoem o tom literário que usei, achei que tornaria tudo mais leve e fácil. Enfim, termino aqui essa breve biografia de um homem que podemos dizer que foi bem-sucedido. Ganhou todo o dinheiro que precisou para pagar pelo prazer de esquecer que nunca deixou de ser o garotinho assustado e covarde daquela fatídica tarde quando pagou por sua primeira mulher.” – Ao proferir essas últimas palavras, o homem magro, barbado e com olhos cheios de ódio e lágrimas, encarou o pequeno público: sua mãe, com o rosto repuxado pelo botox e um leve sorriso nos lábios; três casais de tios com expressões que variavam do susto ao desprezo; dois velhos colegas de chope de seu pai, que pareciam raivosos e surpresos; e um pequeno cachorro que se coçava indiferente ao enterro e ao discurso que um filho fazia em homenagem ao seu recém-falecido pai, antes que jogassem as primeiras pás de terra sobre o caro e luxuoso caixão.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Par de Palavras


É quase impossível pensar o homem sem as cidades, chego até a acreditar que o conceito de civilização se confunde com a idéia de cidade. Quando deixamos de lado grande parte daqueles instintos primários, deixamos de lado também uma selva, passamos a construir o conceito de humanidade junto com a idéia de cidade.
A cidade é um espaço que abriga muitos lugares que abrigam pessoas. Onde há pessoas, existe a necessidade de comunicação, de definição. Todos nós, de alguma forma, sabemos quais os deveres de um cidadão, quais as necessidades de uma cidade..., mas não nos damos conta que na medida em que as necessidades de uma cidade se ampliam, a cidade se torna mais complexa, exigindo a elaboração de leis que garantam o convívio pacífico entre os cidadãos, a documentação da sua História, a produção cultural, a oferta de serviços que atendam satisfatoriamente os seus moradores... a cidade é refém da comunicação, a língua é a expressão mais viva de um povo, os livros são a memória e a prova documental de uma nação.
Em dezembro de 1883 foi criada a Livraria do Globo na cidade de Porto Alegre, um belíssimo prédio que abrigou grandes nomes da nossa literatura. Era um ponto de encontro de intelectuais e uma editora que se lançou na publicação de revistas quando isso era novidade por aqui. O selo mais tarde foi vendido a RGE (Rio Gráfica Editora), empresa de Roberto Marinho, que passou a adotar o nome Editora Globo. Depois de vendido o uso da marca, a livraria seguiu o seu curso, sobrevivendo da venda de livros, continuou charmosa e elegante, chamando a atenção de todos os que passavam pela Rua da Praia. A marca se estendeu para outras cidades e bairros, mas aquela Livraria do Globo localizada na Rua da Praia 268 era como um templo. Era o lugar que todos olhavam com respeito e reverência. Neste ano, fomos todos surpreendidos com o fechamento da Livraria do Globo. Quando digo todos, me refiro a todos os que, mesmo não tendo hábito de leitura, mostraram-se surpresos com o fechamento da livraria que, inclusive, não foi totalmente fechada, continua funcionando nas portas do fundo.
A literatura agora ocupa as portas do fundo do antigo prédio da Livraria do Globo. Na vitrine, agora, podemos apreciar sapatos. Uma sapataria comprou a Livraria do Globo.
Não tenho nada contra sapatos, assim como não tenho nada contra a política da China e o aquecimento global, mas fico inquieto quando vejo um par de tênis ocupando o lugar da obra do Machado de Assis, na vitrine. Fico indignado ao ver que as obras completas do Monteiro Lobato foram substituídas pela coleção das botinhas da Sandy. Não, não tenho nada contra os sapatos, eles vieram antes dos livros, existem evidências de que o sapato surgiu 10 mil a.C., no final do período paleolítico, esses indícios foram observados em pinturas feitas em cavernas na Espanha e no Sul da França. É inevitável perguntar, será isso um sinal? Ao ver a vitrine da Livraria do Globo com sapatos, evoquei as pinturas das cavernas e imaginei que nem todos os nossos instintos primitivos estão reprimidos. Os primatas estão usando toda a austeridade e grandeza do prédio histórico para celebrar o consumo e o fato de ter aprendido a ser bípede? Não, não tenho nada contra o consumo, nem muito menos contra os primatas. Aos que me lêem perdoem-me por ser silente no tocante a essas questões, é que me dei conta do significado da frase “a pátria de chuteiras” e, consequentemente, fiquei surpreso em descobrir que a cidade chutou a palavra para as portas do fundo.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Juramento



Jurarei amor eterno
Nem demais e nem de menos
Mas, no tamanho exato
Na sua praia irei batizar
O seu nome na minha alma
E banhar-me de luz e sonhos
Na beleza de suas margens
Que o meu corpo anseia
Em estar junto
Num contrato de juramento
De um amor cúmplice
Atado nas amarras de sentimentos
Que o amor irá jurar

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Entrando na febre

(Carta enviada ao amigo Lameque Hyde, vulgo Z.Lopes, que aniversaria hoje. Meus parachoques, ò Grande Limão!)
Agora é oficial. Poderia inclusive ter sido uma das manchetes do Fantástico: Deveras é mais um dos infectados com a estranha febre de missivas do BDE (Bar do Escritor).
Cá no fundo gosto disso. Expresso-me melhor com as palavras escritas do que com as ditas, um pouco pela minha dicção errada, em parte por meu sotaque estranho, que nem é interiorano nem é fixado em uma região específica. Mas realmente torna-se uma hercúlea tarefa, se fazer entender estando ébrio na maior parte do tempo. Mas isso é outra história.
O que ocorre, e acho muito bom acontecer, é que apesar da humanidade dispor dos mais modernos meios de transmissão da voz e imagem, a comunicação feita por meio de linhas e linhas de palavras sobrepostas ainda carrega aquele charme blasé do século passado. Do retrasado também. Idéias saindo diretamente do oco da cabeça para uma folha de papel (ou tela de computador, wherever) é algo modernamente antigo. "Eu vejo um museu de grandes novidades". È, a velha carta ainda não morreu. Os Correios e as professoras de português agradecem. Por isso devemos escrever mais cartas, Ave Guerra, que lançou a batalha.
Somos, você, eu e aquela legião de pessoas que se doam para a escrita, meio que amaldiçoados com esta necessidade do escrever. Desalojar idéias que ficam perambulando na cabeça é um paliativo; sempre se está maquinando algo. O pensamento nunca pára, nunca dá um tempo. Ponha à prova: pense por exemplo em uma música erudita (Nocturne in G minor, Chopin), depois em uma cena clássica de filme (aquela da despedida em Casablanca cai bem), logo após relembre um momento de terror verídico (a colisão do Senna ou os aviões se chocando com o WTC). Você fez essa equação de coisas (e sua visualização) somente ao ler estas linhas, correto? Pois bem, agora tente não pensar em nada durante trinta segundos. O nada completo, uma alva e grande folha em branco dentro do seu pensamento.

Difícil, né? Domar um cavalo selvagem seria mais fácil. Dado o espírito indócil do pensamento, a humanidade deveria respeitá-lo mais. Lutou-se por milênios em busca da liberdade do pensamento e pára quê? Para desembocar em "créus" e cruzes. Certo, alguns irão que a experiência do funk proibidão ou da música pseudo-sertaneja que arranha a imagem do meu Estado são manifestações culturais de algumas camadas da população. Pode até ser, não vou comprar uma briga antropológica por conta disso, mas que é algo que fere os ouvidos e embota algumas mentes, é algo a se considerar. Por isso devemos considerar mais as coisas, repensar e reavaliar, na qualidade de produtores de discussões, de futuros diálogos, de apontar caminhos para o pensamento. A literatura tem que ter o comprometimentos em promover o debate, de trazer o pensamento à tona, ao dia a dia, se possível. Não que se exima de seu aspecto lúdico: deste modo viraria um monótono manual de instruções para servir de calço de estante. Um amigo, tempos atrás, usava simultaneamente um Kant, dois Heidegger e um Nietzsche como apoio para uma perna quebrada da cama. É cômico sem deixar de ser trágico (provavelmente menos no caso do Nietzsche, mas aí já é uma treta minha com o bigodudo).
Talvez esteja se perguntando porque escolhi lhe escrever do nada, em uma noite de domingo, ao som de "Hide your love away", com uma pressa anormal, por conta do fim da cerveja. A bem da verdade, não bem sei a resposta. É que quando me enviaram pro mundo não me deram a mochila das respostas, muito menos a sacola das perguntas. Ironicamente vim somente com aquele cacoete de ficar matutando sobre as coisas, sem chegar a um denominador exato, somente para poder transmitir isto em frases mais ou menos coerentes. Instigar as mentes e provocar a criatividade alheia.
Chame isso de dom. Uma espécie esquisita, mas um certo tipo de dom.
O futuro talvez diga o que não sabemos.
ficanapaz
C.Deveras
08/06/2008

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Recanto das Letras

Hoje é dia de propaganda.

Recentemente entrei para o Recanto das Letras, um site de literatura que reúne milhares de escritores, inclusive alguns aqui do Manufatura.
A filiação pode ser feita de três formas; por razões práticas e financeiras escolhi a gratuita.

Então é isso: visitem o Recanto, conheçam seus meandros e se filiem. É mais uma forma de divulgar a nossa arte.

O endereço é www.recantodasletras.com.br

sábado, 7 de junho de 2008


Sobram palavras quando há pouco a dizer
Talvez a loucura coubesse na roupa que deixei no cabide
Ou nem houvesse razão para sair de mim
O mundo multicolorido desfocado pela lente da insanidade
O tempo, escusado de mim, vadia...
Vadia como os últimos boêmios
Que saem pelas ruas, exaustos de viver
Vadiam nas ruas da Penha, Vila Madalena ou qualquer canto deste mundo
Em um quarto carcomido...
Sim, sou um destes que tentam atravessar o país
Num piscar de olhos
Talvez uma necessidade de fugir de mim
Ou de me encontrar em qualquer esquina
Onde os loucos se encontram.
Eis que chego à porta da Casa Verde
Recebendo a chave da Cidade das Rosas
Como honra ao mérito de outrem.
Sou assim, usurpador do trono,
Tenho a coroa e a coragem,
Sob o braço o chapéu... nas mãos?
Delírios feitos de confetes e serpentinas
À espera de outros carnavais
Onde os corpos se encontrem
Suados, purpurinados, débeis.

Sim, espero a euforia que vem do claustro,
A lobotomia, o choque elétrico, a surra, o coice...
Espero o veneno destilado nos cálices sagrados,
O corpo sangrando sobre a pedra.
Espero o que não é para se esperar,
O desespero, a sofreguidão,
E, espero sempre na mais tola calmaria
Aquilo que não há de vir.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Espera no Trânsito


O Recife fede. Isso já é senso comum. É só andar na beira do canal da Agamenon Magalhães com o nariz destampado para se ter uma idéia. Apenas não sabia que a fama tinha chegado até os céus. Só sendo isso para que o Divino decidisse dar um banho completo no Recife por horas seguidas numa chuva torrencial. O resultado são as artérias da cidade entupidas numa eminência de ataque cardíaco; mas ela não morre, é eterna. Quem morre é o compromisso seguinte, importante e inadiável, no qual não se chegará, ou, se chegar, deveras atrasado. Quem se debate numa crise epilética são as células presas em seus sistemas de classe de carros e ônibus, que não podem fazer nada, senão esperar.

E esperam impacientemente contando os segundo e minutos de suas vidas que são perdidos, mas que seriam perdidos de qualquer maneira. Alguns pensam em se emancipar e seguir o restante do caminho andando, mas logo desistem da idéia, seria muito atrevimento, demasiado esforço. Melhor esperar.

Logo a cidade voltará com sua vida e irá respira o seu ar carbonizado novamente. É só esperar, afinal, todos já estão acostumados com o sistema de esperas e subesperas. É mais fácil. Ruim seria se todos vivessem sem nem ao menos aguardar uma espera: o tira-gosto do bar, um cappuccino, um comercial de TV, a Morte. Aí sim, um segundo seria uma perda irremediável e um minuto seria uma vida. Mas não, sempre é mais fácil, todos esperam.

André Espínola

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Doçura do meu fel

instiga-me
a retirar o véu
mostrar-lhe a alva doçura
do meu fel
desvendada entre quatro paredes
ou entre terra e universo
por dentre estrelas cadentes

faz-me iluminar
por entre curvas
que me cercam
procura a que te leve
ao jardim
de escondidos paraísos
lá onde habitam
meus mais recônditos
desejos inda não ditos

depura-me
em linhas de sins e de ais
e me cala
no momento de ápice da explosão
em que tudo se sinta
mas não se possa ouvir
e o corpo estremeça
em torpor
de amortecimento e calor
voltando, lentamente,
a ser o que jamais foi
mas que aparentemente
assim o era, assim o foi:
um precipício lançando-se
ao céu!

Ganhe asas...
E retorne em aconchego e calor!