terça-feira, 30 de março de 2010

cRIança

Perdoem-no crianças
ele não sabe o que faz /
bola de futebol
bola de gude
boneca
pique-pega
botão
carrinho
parquinho
Não. O Mundo os dão
Tristezas no coração
inverte a função,os tornam brinquedos
da fome
do trabalho
do assédio
da miséria
da dor
& da globarbarização

imaginar que elas imaginavam
jogadas num universo
que não contribuíram para
construí-lo
imaginar que elas imaginavam
que os seus atos não perturbariam
a (des)ordem dum mundo
que existe antes delas
imaginar que elas imaginavam
que pais/professores e etc
fossem divindades
imaginar que elas tinham liberdade

Perdoem-no crianças
ele não sabe o que faz

não se pode jogar
lixo ideológico e industrial
nos parquinhos da infância
não se pode deletar
o ícone infância da planilha Vida



Criança,pouca altura,
seu coração é mais alto
que as torres construídas
pelo homem
Criança, pouco peso,
seu coração já pesa
sobre o colo da Terra

Criança,pouca idade,
seu coração é uma velha
que o leite no peito não se seca.

Crianças, dentro desse coraçãozinho
há um monte de bondade
um monte de felicidade
um monte de esperança
&
um montão de perdão.
Faz de conta que essa vida é uma boneca viva.

segunda-feira, 29 de março de 2010

aura rara



.

quer que eu defina
agora, nessa hora
as cores dessa aura rara

que afine a sintonia
para além da tara

que defina alvos
compactue,repare
conserte, restitua

não sei

em algum lugar
alguém talvez defina
alguém ame melhor

e você continua por aí
dançando pelos multiversos

caçando rima
encantado,
raro e perplexo



(rosa cardoso)

Imagem :Angelica_Rivera_Aura_oleotela_50_x_40_2005 

quarta-feira, 24 de março de 2010

Considerações a respeito de um homem nu, em 1926

Há alguns anos minha avó veio morar conosco. Costume antigo, sempre está contando algumas histórias, que traz fresca na memória. Todas repletas de matéria-prima para crônicas nostálgicas ou papos descontraídos em mesa de bar.

Vivendo em fazendas, ou em pequenas cidades do interior de Minas, fala de como sua avó fora laçada numa tribo de índios – não recorda o nome da tribo ou o estado onde ocorreu o fato; fala de como certa vez fora levada com suas irmãs para a cidade para verem o espetáculo do acender dos postes. A tecnologia, então, consistia numa lamparina movida a querosene e o protagonista da cena um homem qualquer, que vinha acendendo lâmpada por lâmpada, iluminando o caminho.

Recorrente em seus assuntos é uma porção de revoluções que ela presenciou. De repente chegavam homens, ninguém sabe de onde, nem servindo a que propósito, e levavam os jovens para lutas em outros cantos. Ela nunca mencionou se esses voltavam esfarrapados, mutilados ou se não voltavam nunca. Tampouco isso vem ao caso.

Era menina, e a década provável os anos 30/40. Penso sempre que batalhas poderiam ser essas, travadas nesses confins do mundo, onde a vida era completamente diferente da contada nos livros de história e nos almanaques de farmácia. Por aqui a bastilha ainda não havia caído, a Rússia sequer existia, e Napoleão, que tinha banhado o mundo com sangue, poderia tanto ser uma lenda mitológica como um santo católico.

Quase sempre concluo que se trate de disputa de fazendeiros – coronéis donos do mundo – lutando pela expansão de suas propriedades, ou promovendo um rotineiro massacre nos latifúndios vizinhos. Uma dessas aventuras, é certo, se trata da segunda Guerra Mundial. Essa, devidamente documentada, passou em sua Macondo recolhendo as motos e os veículos que supostamente seriam enviados para a Europa. Meu avô tivera a sua motocicleta confiscada. Se ela fora para a Europa servir de cavalo motorizado para as tropas aliadas ou se ficou nas mãos de algum burocrata, passeando nas ruas da capital, não é possível saber.

Porém, nenhuma dessas histórias me tocou mais que a saga de Mané Pelado. Num momento em que a ordem do dia consistia em buscar lenha nos campos repletos de cascavéis e cuidar das criações, alvo constante dos predadores naturais e das intempéries da natureza, a paz estabelecida era quebrada pela figura esguia, completamente nua, que ficava rodeando as casas e ao primeiro sinal se lançava às matas e sumia.

Por um descuido, pode parecer que estamos falando de uma assombração, que naquela época realmente existia aos montes. As histórias de lobisomem, de extraterrestres, são um caso a parte. Mané existia mesmo e tudo indica que era um louco, fugitivo de algum lugar, ou, em outra hipótese, um abandonado pela família que sobrevivera comendo raízes, roubando ranchos, capturando pequenos animais.

Mas quem era esse ser que costumava invadir as casas quando todos saíam para a colheita, ou à pesca, para beber o leite recém ordenhado? Quem seria esse homem que aproveitava os descuidos para invadir as residências, comer o pão, beber a pinga, tirar um cochilo em cama quente? Seria uma vítima dessas revoluções, com a sanidade ferida em combate diante da visão do holocausto? Seria um pensador, que um pouco atrasado, mas sozinho e com os recursos que possuía, percebera que a vida que se levava nas cidades era um câncer e o mundo caminhava para o abismo?

Conta a minha vó que, certa vez, sua mãe ao notá-lo se esgueirando nas imediações da casa atirara nele com a carabina. Ele saindo em fuga, para voltar no outro dia, é uma imagem que me impressiona muito.

O que foi feito dele, ninguém sabe. Por certo, onde caiu morto ficou até que a natureza encarregasse de consumi-lo. Encontrado por caçadores, talvez tenha sido enterrado na beira de algum riacho, num túmulo coberto de pedras que o musgo engoliu. Em última instância, pode-se crer que tenha recobrado a lucidez e retornado para casa, onde filhos e mulher já haviam se esquecido do luto.

No mais é isso, ficando cada um com o fim que mais lhe apetecer.


*

terça-feira, 23 de março de 2010

Mentiras que vão, mentiras que vem...


_Alô?
_Oi querido! Já está todo mundo aqui, só falta você...
_Eu sei, mas ainda vou demorar um pouco. Como estão as coisas por ai?
_Todo mundo se divertindo muito, ela é uma ótima anfitriã, tenho que admitir.
_Ahã... ela é boa em muitas coisas...
_Ah não! Você vai começar a elogiá-la pra mim? Eu a conheço muito bem, seis quais são as qualidades dela, assim como sei quais são as suas, mas parece que você não conhece as minhas...
_Delícia, te conheço como a palma da minha mão e sei que você está magoada comigo, mas por favor, não faça nada para se arrepender mais tarde.
_Querido, eu amo você e nada mais me importa...
_Eu também amo você, e você sabe disso, mas por favor não faça drama à essa hora.
_Drama? Eu? Não estou fazendo drama!!! Como você acha que eu deveria agir? Estou sozinha na festa da sua esposa, na sua casa, e ela está só esperando por você para compor a imagem do casal feliz e cortar o bolo... eu não sei se consigo mais fingir que não sinto nada... Você prometeu...
_Sei o que prometi meu amor, mas tente entender, quando eu casei com ela eu queria construir uma história, mas de repente apareceu você com seus lábios carnudos e esses seios fartos, parecendo que iria resolver todos os meus problemas, me oferecendo um mundo novo, e eu não pude resistir... mas não consigo deixar minha mulher, entenda...
_Entenda uma ova! Eu fico todas as noites te esperando, sozinha, e você aparece quando bem quer, além de me fazer passar por situações ridículas como essa...
_Mas você não é minha convidada para essa festa, lembra-se disso???
_Como poderia me esquecer do que estou fazendo com minha irmã? Ela que sempre me ajudou em tudo, me ouviu, me acolheu... Você não passa de um grande canalha!
_A culpa agora é minha? Você sabia como eu era antes mesmo de se insinuar pra mim! E não reclame, eu faço o máximo para manter vocês duas felizes o tempo todo, você pensa que é fácil pra mim?
_Você pensa que é muito bom não é mesmo? Pois saiba que ela desconfia de você, ela já me confidenciou isso uma vez, mas não acredito que ela desconfie de mim, já que eu sou família... ela sabe que eu tenho alguém, mas não imagina quem seja.
_Não é possível, eu procuro ser o mais natural possível, principalmente quando você está por perto... como foi que ela...?
_Não seja ridículo! Que mulher não desconfia de um marido que fica quase a semana toda viajando e quando está em casa nunca larga o celular? Ela não é boba, e eu não agüento mais essa situação. OU_VOCÊ _DÁ_UM_JEITO_ NISSO!!!...
_Clarinha, o que foi? Aconteceu alguma coisa?
_Não Lia, fique tranqüila, continue sua festa, está tudo bem.
_E o Anderson que não dá sinal de vida hein...
_Calma meu bem, ele ainda vai chegar a tempo, você vai ver. Tente falar com ele mais uma vez. - Você viu só o que eu tenho que fazer? Enganar friamente minha própria irmã. Onde eu estou com a cabeça que não abandono esse caso com você e vivo minha vida como tem que ser? Porque eu sou incapaz de fugir e arrumar um cara que goste de mim de verdade, que me mereça?
_Por que eu gosto de você exatamente assim, como você precisa ser amada, e não te enganei um só minuto, não vou deixar minha esposa para ficar com você.
_Canalha! Ingrato! Infelizmente eu te amo demais... mas não pense que ela não vai saber disso um dia...
_Você não seria capaz...
_Não me desafie. Experimente não aparecer em minha casa hoje depois dessa festa ridícula para você ver se eu não conto tudo pra ela. Não tenho nada a perder.
_Cale a boca! Tenho outra chamada, espera ai. – Oi meu amor! Sim, já estou a caminho, mas o trânsito está muito ruim... assim que eu sair desse túnel eu....
_Você sempre tem resposta pra tudo não é mesmo. Espere, ela está vindo na minha direção, parece que vai falar alguma coisa... – Oi Lia, estou numa ligação.
_Eu sei Clarinha, mas você já está aí sozinha faz um tempão. Não quer se juntar à alguns amigos meus, eles querem muito te conhecer?
_Lia, já te falei para não tentar me arrumar namorado, eu não tô afim... E tem mais, já está na hora de você saber de uma coisa. Só um instante – Oi querido, vou falar um segundo com a minha irmã e a gente já conversa tá. Te amo, um beijo.
_Sua louca! Não abra essa boca, eu acabo com você... – desligou na minha cara.
_Minha irmã querida, o que eu vou te falar dói mais em mim do que em você, mas não tenho mais como esconder isso...
_Fala logo, tá me deixando nervosa. É alguma coisa com o Anderson?
_Calma... não sei como explicar mas... por favor me perdoa... é que eu não lhe comprei nenhum presente de aniversário...
_Ah! Mais essa agora. Querida, não se preocupe, ter você aqui já é mais que suficiente. Mas chega, me dá esse celular e vá conversar com o pessoal. Divirta-se um pouco!
_Eu amo você.
_Eu também. Me dá aqui um abraço... Olha lá, quem é vivo sempre aparece. O Anderson acabou de chegar. Amor! Que cara é essa?
_Oi meu amor, você está bem? O que essa ordinária te fez?
_Calma querido, não fale assim com minha irmã... ela só estava se desculpando por não me trazer presente, não é nada importante, não é Clarinha?
_Claro Lia, eu jamais magoaria você.
_Sua irmã é um doce querida. Eu gosto dela quase como se fosse minha própria irmã.
_Ah! Anderson, que ótimo. Somos realmente uma família feliz!
_Somos sim meu amor, muito felizes, os três.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Olha o livro aí, minha gente, vamos chegando!

Opa lá lá, 30 segundos do seu tempo.

Depende da sua conexão também.

Só tenho mais 20s.

Tá.

Eu e o Domit vamos lançar nosso livro querido semana que vem, no Rio de Janeiro.

Sei que tem gente do Rio aqui no blog, quero conhecê-los! Ou re-conhecê-los!

Vamos vamos vamos?

Agora, se você tiver mais um tempinho, pode ler esse texto aí embaixo, que não está no livro, mas foi inspirado e eu acho que vale!

(mais um texto com várias interpretações e passível de discussões sem fundamento)

Amo-lhes com alho,

Paco


Boas decisões em momentos certos


Recebi a notícia da morte dele por telefone, num lugar impróprio, de uma pessoa que detesto.

Acho que isso deixou a notícia ainda mais feia.

Não sei o que eu fiz com o celular, algumas pessoas me pararam no meio do caminho (qual caminho?) para perguntar o que tinha acontecido, empurrei-as todas, xinguei outras, que saco.

Fui até o banheiro pra chorar em paz, mas aí, quer saber, que saco tudo isso, vou embora.

Chamei o elevador, demorou pra subir, fui até à janela, era alto, e me matei ali mesmo.


terça-feira, 16 de março de 2010

Teste do sofá





Reconheceu no telejornal o homem que a enganara com a promessa de sucesso na televisão: na verdade, um falso profissional, estuprador em liberdade condicional, que se fingia produtor de televisão para levar ingênuas aspirantes a atrizes a mostrarem suas habilidades no mítico teste do sofá.
Chorou de raiva não só pela confiança traída, pela honra ultrajada, pelo talento ridicularizado, pelo corpo exposto.


O tal produtor era feio que dói.




Obs: esse texto foi baseado em um fato ocorrido em Brasília, cujos detalhes estão no link.

Outra coisa: recentemente criei um blog, e gostaria muito da opinião de vocês. Estão lá alguns minicontos, um conto sobre o Big Brother, uma fotografia curiosa tirada em Belo Horizonte... esse blog reúne duas de minhas paixões, a literatura e o turismo. O endereço é http://www.prosaseviagens.blogspot.com/

segunda-feira, 15 de março de 2010

Exercicícies

Não fosse somente Alice

o que,
além do que se disse,
                                 ela sereia?

Fosse Alice também uma sereia
ela não seria só Alice:
seria uma sereia Alice.

E o que faria Alice nesse caso,
(o de ser menina)
além de meninices?

                       Faria sereialices.

Sereia só é melhor
que somente Alice?

Então melhor sereia
                                    (aquilo)
que uma Alice a litro.

sábado, 13 de março de 2010

Quem???


- Alô.
- Alô, quem está falando?
- Com quem a senhora quer falar?
- Quem está falando?
- Fernando? aqui não tem nenhum Fernando, não senhora.
- EU QUERO SABER QUEM ESTÁ FALANDO!!!
- Ah, sou eu, o Jesuíno.
- Escuta, Jesuíno, a Beth está?
- Quem? Anete?
- NÃO, A BETH, BÉÉ-TEE!!
- Ah, não tá, não. A senhora quer deixar recado?
- Tá, diz a ela que a Márcia ligou. Eu ligo de novo depois.
- Quem? Ivone? É para ela ligar?
- NÃO! MÁÁRCIAAA...
- Ah, tá certo, dona Ivone, eu digo, sim. Bom dia pra senhora.
- NÃO!!! NÃO É IVONE, É MÁR...
- tuuu... tuuu... tuuu...


"Beth, a Márcia ligou. Um beijo, Carlos"


_________________________________________
Publicado Originalmente nos EcosDiversos
(Direitos reservados, aqui e lá.)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Aviso aos desavisados


Neste sábado, dia 27 de março, ocorrerá o lançamento do
Vem cá que eu te conto no Rio de Janeiro

O evento será realizado na sede da Editora Multifoco
Av. Mem de Sá, 126 - na Lapa - das 17 às 21:00



Mais informações, acesse http://vemcaqueeuteconto.wordpress.com





Segue abaixo um conto (que não está no livro):


Bons costumes


Todo dia depois do almoço, quando ele caia no sono bem em cima do carrinho de mão, ficava igualzinho tartaruga de ponta cabeça. Eu e os outros rapazes ficávamos sentados no chão, encostados em alguma sombra. Só ele tinha coragem de dormir no carrinho, todo curvado. Mas ele era assim mesmo, não tinha vergonha de nada que desse na telha de fazer. Trabalhava igual todo mundo, nem mais nem menos, mas trabalhava cantando, coisa que a gente não fazia por falta de costume - ou talvez por medo. Tinha mulher igual a todos os outros, mas levava ela para dançar e, de vez em quando, preparava a janta, coisa que a gente, homem de família, não faz por cansaço - ou talvez por costume. Nunca entendemos aquele jeito diferente dele fazer as coisas no mundo, mas ele parecia mais feliz. Talvez fosse a gente que estivesse imobilizado, igualzinho tartaruga de ponta cabeça.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Pequena Morte


Na primeira vez, acordei primeiro e fiquei olhando ela dormir, seu peito subia e descia calmamente, compassadamente como um relógio preciso, já era dia e eu amei estar ali. Continuávamos abraçados, encaixados, não era mais virtual e continuávamos conectados. Admirava seu semblante calmo, amável, havia um leve sorriso mesmo estando dormindo. Deslizei as costas da mão pelo seu rosto, descendo pelo pescoço, por sua  pele cor de bronze e seu cabelo agora selvagem, depois da guerra travada ali naquele campo de batalha. Como agora, não tinha o mínimo de sono, queria guerrear mais, mas também adorava ver ela em paz. Ainda mais quando a paz era dupla, pois nessa luta ninguém sai perdendo apesar de acabarem os dois morrendo. Uma pequena morte é verdade, mas que sempre é buscada, pois com ela o corpo para no tempo e apenas por um momento, as almas se fundem, voam e dançam para retornarem completas, repletas um do outro e de si mesmos. E todo dia eu quero morrer de novo.

Joakim Antonio

quarta-feira, 10 de março de 2010

Mais Insólito



Mais Insólito
Cris Linardi

Era uma situação incomum. Ambas não haviam descoberto ainda o que eram. Se irmãs, amigas, inimigas, projeto inacabado de algum experimento científico. A verdade é que as mínimas experiências de uma interferiam drasticamente na outra. Se uma comia amendoim, simplesmente porque adorava amendoim, a outra tinha uma terrível reação alérgica que atingia as duas, eram acometidas por vergões avermelhados, como se tivessem sido atacadas por um enxame de abelhas. O pior acontecia quando uma se apaixonava. Mesmo solteira, a outra tinha que acompanhá-la aos encontros.
Atitudes discrepantes existiam, uma era mais discreta e certinha do que a outra. Não ir para a cama no primeiro encontro, deixar as coisas caminharem naturalmente, tudo acabava sendo atropelado pela ousadia e pressa da mais petulante. Os homens ficavam confusos e sempre fugiam. Depois vinha a tristeza, a ressaca moral e a vontade incontrolável de uma estrangular a outra.
Todos confundiam ambas, mesma cara, mesmas roupas; as personalidades extremamente diferentes, contudo, apareciam rápido. Uma ajudava a outra, às vezes, é verdade. O afoitamento de uma era emprestado à mais comedida e a paciência era trocada com a mais ansiosa.
Foram vivendo e convivendo. Tentando se acertar, mas as desavenças vinham, por vezes tão violentas que ambas se esqueciam das qualidades e só se concentravam nos defeitos.
Encaminharam-nas ao analista. Ele tentou ajudar, contudo quase enlouqueceu junto com as moças. Pediu ajuda a um amigo psicólogo que desistiu horas depois de tentar.
A mais discreta maquinava dia e noite uma forma de se livrar da mais atirada. Lendo seus livros de filosofia, analisando o comportamento humano, algumas ideias começaram a se formar na mente. Ela mal sabia que a outra já pensava em algo para alterar a situação insustentável.
Aos trintas anos, a maturidade não permitiu que aquilo continuasse. Certa tarde, a metida a filósofa abandonou seus estudos e foi até o quarto onde a outra descansava. A faca na mão trêmula não parecia tão assustadora. Aproximou-se, o cheiro de jasmim do creme pós-banho roçando-lhe o nariz. Não, ela não teria coragem. Diante do vacilo de suas pernas, o coração acelerou e os pensamentos gritaram: é preciso! Até quanto mais aguentará?
A irmã abriu os olhos. Entendeu o que acontecia. Olhares se cruzando, sua serenidade assustou a outra. Não seria possível concretizar seus planos. Ágil, tomou o objeto da mão da moça. Por meio segundo que durou horas lentas, ambas vislumbraram os semblantes diabólicos e assustados, havia brilho estranho, misto de dor e satisfação.
A lâmina rasgou a carne de uma. Caiu ensanguentada sobre a outra, esta sentindo toda a dor de ser golpeada. O mundo foi sumindo lentamente. O teto foi ficando desfocado, depois escuro. E a vida foi-se esvaindo em sangue quente. Ambas tinham se esquecido que moravam no mesmo corpo.

domingo, 7 de março de 2010

Loucura&Silêncio

imagem: Murat Harmanlikli


Não fosse esta loucura
serias mais que abstração nesta linguagem de ícones
que se movem como formigas gigantescas
a carregar consigo as lembranças.

Não fosse este silêncio
regressarias de tuas viagens, mesmo com ressaca de viver
ou tédio a corroer tuas esperanças que em vão
se movem como ratos a remexer latas na despensa.

Não fosse esta loucura
estarias presente em meu cubículo a bater-me na cara,
coagindo-me a dizer mentiras que lhe agradam,
apenas para salvar-lhe da névoa que encobre teu rosto.

Não fosse este silêncio
viria possuir-me o teu espírito em noites sem lua
em tempos de mistério e sombra, simplesmente
pra fazer gracejos e brincar sobre meu corpo quente.

Não fosse esta loucura
não serias só palavras rabiscadas por mãos trêmulas
em muros carcomidos, onde a alvura da cal
não esconde os desfavores do tempo.

Não fosse este silêncio
não terias ido embora pra longe destes olhos
deixando a este louco apenas o consolo
de versos obscenos no espelho do banheiro.

Mas, terias me libertado.
Desatando os nós que nos envolvem;
quebrando este silêncio que devora
as entranhas sufocando em nós o ânimo.
Quebraria este espelho que revela
a nossos olhos as misérias
a que nos condenamos;
Romperia o cordão que injeta em nós venenos.
Abortaria, pois, este desvanecimento
que nos rouba lentamente um do outro,
tornando loucura a tudo que um dia
dissemos querer da vida.

sábado, 6 de março de 2010

O Observador


Estou sentado, não vejo, mas sei que meus olhos olham pra mim.
Alguma secreção, secreção?, é. Algum visgo verte das minhas cavidades oculares.
Como eu posso ter certeza que meus olhos estão virados pra mim…? Não sei, será que estão.
Isso me assusta…
Viro a cabeça para cima, tentando conter a coceira no nariz. Escorre alguma coisa na minha boca. Me afogo. A cabeça que se move, a cabeça, a mão no rosto, o espirro.
Um espirro irrompe e jorra mais coisa viscosa em cima de mim.
O lugar onde ficavam os olhos doeu pungente quando espirrei.
Lembrei dos dedos.
Os dedos permanecem manchados, sim… Eu sei que permanecem porque ainda não lavei as mãos. Manchados de sangue e lágrimas involuntárias e puz e tudo mais que saiu e continua saindo do lugaro onde ficavam meus olhos.
Será que eles estão olhando pra mim?
Acho que sim. Marquei bem o lugar.
Marquei.
Sentei na cadeira, amarrei meu tronco pra não me mecher, as pernas, pra não cair. É! Marquei.
Fiz dois pequenos buracos na mesa e memorizei a rotação exata que eu deveria pousar os olhos.
Marquei o lugar certinho.
É… Sim…
Eles estão virados pra mim. Tenho certeza.
Você vai voltar, vai me encontrar aqui, de novo, e vai dizer dessa vez que eu não me enxergo?
Pf…
Imbecil.
.
Willy Barp

quarta-feira, 3 de março de 2010

conversa de namorados

(ele) que a nossa felicidade é por adição eu sei, quero saber mais é do
lento movimento dos planetas, esse ápice martirizado dos meus sentidos,
da verdadeira materialidade da água, da madeira, de onde vem realmente
essa coisa que ouvimos o mahler tocar, do cheiro da tangerina como diz
o gullar

(ela) tá! chega amor, vamos mudar de prosa, e não pra e. a. poe,
por favor

segunda-feira, 1 de março de 2010

tramontina

trago marcas de faca no peito, no ombro esquerdo e nas pernas. foi a falta de amor de meu pai por minha mãe que causara tais cicatrizes. herdei dele o abandono precoce e da minha mãe os amantes. e é aí que a minha história se parece com a de Carlos, a diferença é que não acredito em espíritos. no vigésimo sétimo capítulo, eles arrastavam um corpo para o rio, quase não havia sangue, não fosse o orifício no peito do primeiro tiro, o único que sangrava. os amores rasgam feito as facas de cozinha, pouco afiadas para não cortar os dedos, mas pontiagudas e no tamanho ideal para furar fundo.