domingo, 24 de agosto de 2008

EVOCAÇÃO INÚTIL

paisagem brasileira - Lasar Segal

Ó meninino que fui
dono duma infância sabor novalgina
sofrendo delírios por doses excessivas
de xarope para o pigaro e a tosse -
infantil viagem sob o sol anti-Copérnico
dos trópicos, onde te perdi?

Ó fotocópia do pai
imprudente criatura
amassando com o calo dos pés
os caramujos da esquistossomose:
educado naturalmente
por um brejo povoado por destemidos vermes -
que vida era aquela
onde a felicidade se escondia
no pequeno peixe que resistia
em meio as fezes e ao detergente
expelidos pelos intestinos da civilização?

Ó minúsculo sonhador
que escapou do coice de cavalos humanizados
pelas placas de trânsito
e a covivência com as rádios AM -
que motivo havia para se ser feliz
nas axilas daquela cidade
que produzia mangas
e goiabas melhores do que homens?

Ó incansável infante
que o tempo mastigou
até torná-lo meu antepassado:
te procuro tremendo de medo
das guerras televisonadas
em horário nobre;
tremendo de medo
dos vazamentos radioativos
discutidos nas mesas de bar -

que estupidez geográfica te levava
a crer que a tua casa seria o próximo alvo?

Ó ignorante de si mesmo
te procro mijando sobre as flores do jardim
num dia esquecido por todos
por não haver algo de novo nele -
que risos você riu nessas tardes
por nada que valesse a pena
ou merecesse apreço?

Ó curioso moleque
interessado na decomposição dos ratos
na fratura exposta, no fogo nas petroquímicas -
me encontro em ti
no olhar no passo na voz

e retorno em seguida
para a merda de vida que será a tua.






* do livro Comerciais de Metralhadora

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

DORIAN GRAY


Ela veio como ninguém antes
Sentou-se calma tragando medo
Delirou calada memória fumê
Taciturna víbora enciumada
Pegou da pele fogo aceso e sorriu
Iluminou a casa com tristes olhos
Restando nada, apenas ela dentro

Quando ela entrou e a viu: silêncio
Nada que fizesse a esqueceria
Furtiva e enciumada perderia razão
Embora medo faltasse até os olhos
Atravessou dentro até o pico
Do outro lado distante visível dela
As duas se vendo em contrito ódio
Delas que nunca amaram senão suas

Ele veio tarde desnudo de pressa
Isento de cólera e recalque aproximou
Ela o olhou ao longe e ela também
Ele a viu e depois ela, diferentes passos
Voltou-se consigo tédio e provimento
Viu que ela o viu e que ela o viu
Ele parado no meio entre elas e ele
Divido o olhar em duplo pensamento
Esgueirou-se tarde à malemolência

Sutil caminhou dos quatro à chapelaria
Dolce & Gabbana em ziguezague no ar
Vislumbrando Kendalls curvilíneas tragou
Pára no hall entreaberta à saída estática
Ela os olhou antes de ir embora sozinha
Ela a viu sair vislumbrando bailado e classe
Ele a viu sair respingando rastros e tons
Ela os deixou ficar exprimindo medos e vontade

Pensou a vida oferecido nada senão ela
Tentou a dor despossuído tanto quanto eles
Desejou manter-se unida a pouca posse
Mas triste definhar pôs-se necessário
Relutando o norte visco do desejo
Dietética paciência aflita despediu-se

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Criatura


Queria que antes de mim viesse o verbo
Não queria o verbo temeroso e triste

Queria o verbo verde
O verbo que possibilitasse um entendimento sobre a maturidade
Obedecendo o passar das horas

Se todo incompreendido é louco, torto, insano...
Mil vezes a minha estupidez que não gosta da resposta pronta
Mil vezes a minha estupidez que quer provar o amargo das coisas e
O verde na sua fase mais primária e imprópria para o consumo

E, sendo louco, por não querer a síntese exposta na introdução
Me fiz de inteligente lendo as obviedades dos textos
As texturas que evidenciavam que era aquilo, e só aquilo

A coisa aparentemente ignorada encontrou em mim terreno fértil
E tudo que era considerado loucura, mesmo sendo primário
Mesmo sem ter maturidade suficiente para nos oferecer sementes
Acomodou-se em meu incomodo

Foi letal!
Marcou visualmente, matou o óbvio,
Me trouxe palavras antigas de cara nova
E a imagem deixou de ser possibilidade
Vi surgir em mim o verbo em cujos braços quis nascer

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Pegadas



Pegadas na areia
Rastro do meu passado
Deixados no tempo
Grãos de areia espalhados
Contam minhas histórias sem fim
Pegadas na areia
Marcas da vida apagada pelos ventos,
Pelas águas dos mares
Para levar distante
Tudo que existe dentro de mim

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Sobre telefones, escritores e a vida calma na Bahia

Telefone deveria ser proibido de tocar antes das dez da manhã. É um acinte ser acordado violentamente por aquele barulho metálico, um dos símbolos ocidentais da impaciência, a irritante e grave voz da agitação do mundo moderno, irrequieto e apressado, que parece ter uma preferência sádica em tocar ainda mais alto quando quem está sendo chamado está dormindo o sono dos justos. Ou dos injustos, tanto faz.
Esse foi o breve pensamento que atravessou meu sonolento e nublado cérebro, chacoalhado violentamente pela resposta automática em me por sentado prontamente e com o fone em uma das mãos:
- Alôôô...- Será que sonhei que o aparelho tava tocando?
- Fala, Fezes...- Tive certeza que não era sonho. É um pesadelo. Só há uma pessoa no planeta que inicia uma chamada telefônica dessa maneira. Meu amigo Edevars. Faltava saber porque um indivíduo em férias na Bahia ia ligar para outro fulano, a mil e tantos quilômetros de distância, às nove da matina, acordando o pobre coitado.
- Ed, isso são horas de acordar um cristão?
- Ô guri, aqui o tempo anda com seu tempo próprio... A propósito, você atendeu rápido, hein?
- É que dormi na sala... Sabe como é, cheguei meio tarde ontem, com algumas na cabeça, daí que a Catarina me “aconselhou” a ficar pela sala mesmo.
- Hum... Esqueci que você tá morando com a versão feminina de Kublai Khan....
- Ah, cara deixa disso... Ela é legal.
- Entornando todas na quinta à noite, hein?
- Olha quem fala... O profissional do copo. Eu sou um reles aprendiz.
- Não me lisonjeie... Escuta Juliano, te liguei para tirar uma dúvida.
Suspirei aliviado. Tava pensando que novamente o Ed ia tirar uma com a minha cara, falando que tava na praia e taus, enquanto eu mofava no Centro-Oeste.
- Sou todo ouvidos.
- Você ainda escreve poemas? Sei que sua praia são mais os contos, mas não te dá uma vontade às vezes de escrever algo em verso?
- Arram – um leve pigarro geralmente dá um toque de seriedade ao que vai ser dito – Bom, na verdade às vezes eu escrevo um soneto ou outro, mas costumeiramente eles só aparecem quando estou meio deprimido ou chumbado... Não sei explicar muito bem isso.
- Aí é que está. Como você sabe não sou muito de escrever versinho, mas estava um belo dia na praia – Pronto, pensei, agora vai começar a esculhambação – Tava tomando uma com um pessoal, quando alguém que estava me apontou como escritor e poeta. Foi a senha para que o mulherio começasse a me olhar com outros olhos. No final da noite, sem papel ou caneta, tive que escrever um poema na areia da praia, para provar para uma ruiva curvilínea que sabia versar... Pena que não tinha papel e caneta para anotar aquilo... Era um belo poema. Queria tê-lo guardado ou ao menos me lembrar o que havia escrito.
- É um belo kaô, para falar a verdade.
- Modéstia à parte, foi perfeito... Quando a gata bobeou, babau...
- Imagino... – cara de sorte.
- E você, escrevendo muito?
- Ando meio sem inspiração ultimamente... Acho que é o limbo literário. Não ando bêbado o suficiente.
- Bom, desta parte eu não posso reclamar. Vou levando a vida em um ritmo bem baiano, vendo as moscas voarem quadro a quadro e o sol se locomover descompromissado pelo céu... Deitado na rede, dou uma bicada na loira gelada, uma bitoca na morena quente e mentalmente me pergunto (com uns quinze minutos de atraso da primeira para a última letra da frase): “Têm vida melhor?”... Nem tento raciocinar, ficar pensando muito, para não perder tempo...
- Eu não ando conseguindo escrever bem ultimamente, Ed... Acho que não estou sofrendo o suficiente...
- Garoto, se eu fosse trocar a escrita pela felicidade, nem pensava. Dane-se a posteridade...
- Pô Ed, justo você com esse papo de felicidade? Você quer ser feliz?
- E quem não quer? Não é essa a busca de todo mundo?
- Pode esquecer... Isso é lenda, igual a Papai Noel e o Coelhinho da Páscoa.
- Têm sim... Sempre têm um pouquinho de felicidade, nem que seja a conta-gotas. Conversar com os amigos, tomar uma cerveja em uma tarde ensolarada, receber um pagamento, fazer uma promessa (que não se sabe se cumprirá)...
- Ce tá parecendo aquela propaganda do Martini: “Momentos de prazer, isso é viver”... Meio punk isso... Ainda mais na voz do seu quase xará, o Ed Motta.
- Mas tudo, tudo mesmo, fica em segundo plano, se não é coroado pelo encontro da cara-metade, aquela garota que te faz perder noites de sono, deixar o trabalho mais cedo, comprar flores em um dia qualquer e pagar o mico pela cidade, andando com um buquê no meio da rua...
- Olha só... Quem está sendo romântico.
- Pois é... Que me adianta, ficar aqui na Bahia, nessas praias lindas, pegando essas morenas gostosas, uma a cada dia, esse sexo selvagem e essas orgias escabrosas, se nenhuma delas consegue ao menos apreciar o belo som do canto de um passarinho ou se deliciar com um pôr-do-sol? Onde anda o romantismo no século XXI? Será que foi substituído por este hedonismo moderno e descompromissado?
- Ah, por favor, pare...
- O pior é sentir ataque frio e calculista da inveja, vinda dos meus amigos casados ou comprometidos... Principalmente aqueles que têm mulheres ciumentas...
- Ahhhh... Saquei... – Tinha que esculhambar... Tinha. Aproveitei a deixa para me servir de uma dose de Jack Daniel´s. Belo café da manhã.
- Quando digo que é difícil... Essa vida de solteiro descompromissado, que hoje dorme com uma, amanhã com outra. Pô, têm dias que bate uma solidão da porra...
- É, é uma vida dura, imagino como deve ser isso.
- E o pior, é que ainda têm gente que me acuda de ser pervertido, ou coisa parecida... dizem que é cafajestice, mas eu rebato: “Gente, é que tenho o coração grande! Cabe mais de uma... Então para quê desperdiçar espaço? Tanta mulher sozinha e carente no mundo!”
- Cara, você tá no maior monólogo...
- Viva a vida, guri, senão um dia você acorda vestido com o terno de madeira e descobre que não fez nada nela... Há uma verdade incontestável: fatos marcantes fazem explodir palavras no oco da cabeça. Às vezes, palavras geniais. E se você não fizer nada de marcante na vida, vai perder várias delas.
- Nisso eu concordo contigo; a tragédia, o sofrimento e a solidão parecem ser combustíveis para o bem escrever... Não escrevo muito bem quando estou amando. A felicidade não me inspira...
- Na verdade, para alguns inspira. Mas no geral, fica uma coisa muito delicadinha, bonitinha, felizinha... Uma frescura total, eu diria. Um pouco de caos aqui, de angústia ali, uma pitada de melancolia e um trago de cachaça da boa... 25 minutos no fogo da paixão não correspondida e taí uma boa poesia... Sujeito-homem-do-Goiás não nasceu para versar florzinhas...
- Podecrê.
- Aê, acho que vou ficando por aqui... Tenho que me barbear para buscar uma dona ali.
- Você, se preocupando com a aparência?
- Pois é, o tal do “metrossexual” veio acabar com o sossego do machão-desleixado-e-com-barba-de-três-dias... A mina com quem fiquei na sexta não ligava para muita coisa; a do sábado, achava legal cavanhaque e a que estou para pegar têm ojeriza de pêlos... Fazer o quê, é a vida.
- Peraí, quantas você já pegou por aí?
- Acho meio depreciativo esse termo “pegar”... Digamos que já me apaixonei umas quinze vezes na Bahia...
- Em dez dias?
- Algumas coisas andam rápido por aqui... Mas como posso dizer não? A fama do “pueta” já se espalhou... Bom garoto, é isso aí. Acho que já gastei demais o telefone dos outros.
- Como assim, não está em um hotel?
- Nada, tudo por conta de uns amigos das antigas... Me deixaram tomando conta de um casarão na beira da praia... Precisava de um lugar tranqüilo para me inspirar e escrever, eles, de alguém que tratasse dos cachorros e desligasse as luzes. No fim, fica bom para ambas as partes... Acho que vou acabar me acostumando com essa vida. Bom, é isso aí. Se cuida...
- “Té mais”
Fiquei ali sentado pensado na boa sina que alguns possuem. O Edevars é um desses. Porra de sujeito sortudo. Nisso o telefone toca outra vez. Era minha dona. Quase que literalmente falando, afinal, ela paga todas as contas:
- Juliano Werneck, acordado a essa hora! Milagres acontecem!
- Coisas do destino, baby.
- Liguei para te avisar que amanhã vamos para a fazenda da Tia Emengarda. Vai ter um bingo de família lá e quero que você esteja bem arrumado e não encha a cara desta vez, ok?
- Seu desejo é uma ordem... Câmbio e desligo.- acendi um cigarro e voltei a andar de um lado para o outro. Putz, esses bingos da tal tia eram um porre. Um monte de velhinha tarada me olhando esganiçado. Daí para o copo era um pulo. Tinha que tomar uma atitude viril naquele momento. Peguei minha carteira e olhei: nenhum dinheiro. Mas em compensação, haviam quatro cartões de crédito e havia estourado somente um. Voltei a pegar o telefone, estava decidido:
- Alô Ed, têm lugar para mais um aí?

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Mar de Cerveja

Foto: Felipe Ferreira

a cidade estava
anoitecida.

e com ela

ruas, pontes,
calçadas,
escritórios e
esquinas.

en(dia)brados
estavam

faróis, janelas,
luminárias
botecos, copos
e mesas.

e o capibaribe
transformado
num mar
de cerveja.

André Espínola