domingo, 29 de novembro de 2009

QUINTA

Abro os olhos devagar, tentando não me irritar com o toque do celular. Lizt em versão de bolso me avisa quem está ligando. Demoro um pouco para atender, buscando alguma saída dentro daquela loucura. Não há saída. Atendo enfim.

- Alô.
- Por que demorou a atender? Tá com outro? Pondero antes de responder: -Tava dormindo... São duas da manhã!
- Hoje é quinta! Esqueceu? Você me deve duas horas!

- Não... não esqueci. Só é cedo demais... Posso dormir?

- Não! 

Ser só dele às quintas, era esse o acordo. Saio de casa e entro no carro que me espera.

O motorista mal olha quando abre a porta e me entrega uma caixa.

- Está atrasada.
Era verdade, tecnicamente a quinta começou à 00h .
- Perdão.
Sinto um leve arrepio me alertando. Presságios confusos rondam minha cabeça. Tenho a sensação de estar avançando para o desastre. O motorista volta-se para mim e diz numa voz neutra:

- Tira a roupa e abra a caixa.

Obedeço em parte, tiro minhas roupas enquanto o carro avança pela madrugada. Abro a caixa devagar. Um par de algemas e um colar com o nome dele gravado, ponho o colar. Não consigo colocar as algemas.

Quando o carro para são quase 3hs, o motorista abre a porta eu desço. Usando apenas saltos altos, o colar e o que me resta de rebeldia. Ele me espera na escadaria. Passo a ele as algemas. Ele sorri e segura firmemente meus braços. Desliza pelas minhas costas, num caminho sinuoso, suas mãos grandes e quentes. Ele me agarra pelos cabelos, os afasta, beija e morde meu pescoço. Segura e acaricia meus seios como quem toma posse.

O corpo ainda vestido do homem roçava em minha pele nua. Ouvi minha respiração entrecortada e tentei me controlar. Os braços doíam levemente. Ele me empurrou para a casa sem me libertar do abraço. A escada range quando afinal subimos os degraus. Eu arfo e começo a tremer levemente. Já conhecia o cenário. Piso de madeira encerada, pé direito alto nenhum móvel além da enorme cama onde ele me jogou sem cuidado. Ele tira as próprias roupas, devagar e cuidadosamente, enquanto diz bem baixinho quase docemente:

- Eu sei do que você precisa!

Beija suavemente minha boca.

- Vou cuidar de você. Você é minha e sabe disso... -a cama range quando ele se move. - Huhum... Sua por todo o dia. - Outro rangido quando ele me vira de bruços, sinto o lençol de seda sob meu rosto e uma liberdade estranha. Nada ali estava mais sob meu controle. Os pensamentos coerentes param, esqueço a multidão de vultos sem rosto que nos observam e apenas obedeço. Ele ri.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Despetalado

Hoje por mais que eu queira dizer muito, o muito me falta, me escapa. Não que o tempo me lacre, me transmute a um mero espectador, porque tempo nunca tive, mas às vezes consigo escapar dele também. Não são as dores de não poder ser e fazer o que quero ser e fazer, mas as dores de não poder me perdoar pelo que não sou e pelo o que não faço... Ainda. Não que eu reclame, mas reticências são constantes em minha vida. Sou alguém que sempre fica no continua..., Que se deixa levar pela brisa da obscuridade, onde as entrelinhas sufocam o âmago da minha alma, e me deixam despetalado...

Amanhã? O que acontecerá? Viverei mais um dia? Serei pleno em minha consciência de poder corrigir-me, evoluir-me, errar ou acertar? Ainda que eu não tenha certeza, é essa premissa que me deixa feliz. Essa chance de poder antever e sonhar, enxergar além do que eu possa vislumbrar, estar sempre um segundo à frente, mesmo que primitivamente incauto em aparentes desilusões e sofrimentos.

Não que eu tenha uma gana de ter tudo de novo, de conquistar, ou de voltar os meus passos e refazer cada caminho, apenas para sentir novamente o frescor da vivência, seja ela agradável ou não. Não que cada pessoa envolta de mim seja um pouco do sangue que corre em minha veia. Mas sim o que me sustenta, me dá força plena para aceitar e seguir em frente. Pela graça de poder dizer: eu sou humano, eu tenho escolhas, eu tenho amigos. Mesmo que da falta que faço a mim mesmo, peço-me perdão. Perdão esse, que valerá se por algum acaso eu me encontrar. Não estou ligando se o que falo agora vai estar fazendo sentido com tudo que já falei. Nada agora me importa se faz sentido ou não. Ligo apenas para o que está à frente dos meus olhos...

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Planos de Vôo

Imagem de Hugo Martins



1 – os motivos


Sempre haverá um rompimento

ou discussão envenenada.

Por um momento, bem sabemos,

motivo é o que menos há.


Sempre haverá uma dor de perda

que só se perdendo para esquecê-la.

E há, sempre há, motivo obscuro

nunca suposto, jamais revelado.


Sempre haverá demissão inesperada,

concepção indesejada, inoportuna,

surgida em hora ingrata pela mão de sujeito

sem-nome, sem-vergonha, sem-cara.


(Nenhum que justifique ou que explique)


2 – a forma


É público, porém limpo –

outros verão o espetáculo,

não aqueles de apreço.


(Em casa, o sangue manchará

cortinas, desvalorizará o imóvel.)


É público, porém limpo –

outros verão o show, serão

aqueles que por um ou dois dias

deixarão de dormir,

beberão café em excesso,

terão um cigarro queimando os dedos.


Serão aqueles que esquecerão logo,

que comentarão via telefone,

especularão pela mãe – pobrezinha! –

e levarão o episódio às manicures.


É público, porém limpo.

Logo a ambulância fará o seu serviço

e a chuva ou as varredeiras, o seu.


(Em casa, o sangue entupirá

o ralo e excitará o cão.)


3 – o viaduto

a) Demolir seria insano, já que é via importante que oxigena o corpo da cidade. Demolir seria pôr fim a engenharia respeitável, amputando a paisagem. Bem sabemos que sempre haverá outros métodos a serem utilizados: a corda e a faca preenchem o cardápio.

Demolir seria insano, já que é veia vital que irriga o coração da cidade. Demolir seria incinerar o dinheiro do contribuinte, aleijando o cenário. Bem sabemos que sempre haverá outras formas convidando ao ato: revólver dormindo debaixo do travesseiro, mata-rato na prateleira final do supermercado.


b) Policiar se mostra inútil – seria o mesmo que montar base sobre os ossos dos cavalos ou à estátua de um elefante cinzento.


Policiar se mostra inútil, posto que se trata de região rica em possibilidades: os rios convidam ao afogamento e as margens barrentas à decomposição.


E quando tudo estiver sitiado, sobre a cômoda desaparecerá uma dezena de comprimidos da mãe.


4 – a rota

Nenhum semáforo que avermelhe

ou placa de trânsito que obrigue


(O sol

projetando a sombra)


Caminho pouco imaginativo

de paisagem em baixa resolução


(O vento

desmanchando o penteado)


5 – instante


Último pensamento

incapaz de ser compartilhado

pela brutalidade do pouso:

nada é mais belo que o pôr-do-sol

dourando as bordas do abismo.




*

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Revisited

Já era a terceira reencarnação como mulher, um saco.

Depilação, menstruação, cabelo, maquiagem.
Malícia, mentiras, segredos, jogos inúteis com homens inúteis.

Calculei o tempo, olhei em volta, as ancas da mulher chata que vai dizer que é minha mãe e que não posso fumar em casa e isso e aquilo estão dilatadas.
Vi aquela mão de novo, me puxou pela cabeça, filho da puta.
Começo a chorar, dos males o menor, assim ele não bate na minha bunda recém-chegada.

Falando em bunda, nasci no Brasil.

O tempo na Terra passa rápido.

15 anos depois e aquela bunda que saiu da bunda cheia de sangue da minha mãe agora já solta o próprio sangue.
Estou menstruada, com espinhas.
Tenho tantas dúvidas quanto mensagens de garotos tapados em meu celular cor-de-rosa.

25 anos e todos dizem que sou linda.
Mas não olham em meu rosto, e nem preciso dizer pra onde é que estão olhando enfim.
Trabalho demais, minto muito, coleciono segredos e namoros fracassados.
Uma mulher moderna.Independente. Faço sexo sem compromisso.
Um sucesso, segundo minhas amigas. Vadias.

35 anos e descubro que meu marido tem outra.
Grávida, fujo dele, da cidade, da merda toda.
Até que foi legal. Fugir é coisa de mulher decidida.

45 anos. Morri num acidente de carro.
O caminhoneiro imbecil que me matou dormiu no volante.
A alma saindo do corpo, e ainda deu tempo de ouvir um transeunte dizer em alto e bom tom que a motorista era mulher, que a culpa devia ser minha.
Guardei bem a cara dele.
Se volto a tempo, seduzo teu filho com a bunda eterna.
Se volto homem, aí campeão, aí você tá ferrado.
E tenho dito.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Isla Mujeres


Pirâmide de Kukulkan, em Chichen-Itzá


Cenote (poço natural) de Ixxil


Ói eu doando um livrinho!


Amigos, tive a chance de conhecer Cancun no mês passado. O mar é tudo aquilo mesmo que dizem, mas as atrações da região não se limitam ao Caribe. A cerca de 200 quilômetros de distância, ergue-se Chichen-Itzá, uma das cidades maias, recentemente eleita uma das novas maravilhas do mundo, juntamente com o Cristo Redentor.
Bom, o fato é que aproveitei pra doar um livrozinho meu no hotel em que nos hospedamos. Ao contrário dos brasileiros, os estrangeiros tem o belo hábito de ler muito, inclusive na piscina, motivo pelo qual o hotel disponibilizou uma pequena estante que recebe doações de livros.
Acima, umas fotinhas da região.







domingo, 15 de novembro de 2009

Fanatismo - Flá Perez

Sem qualquer respeito
ou nenhum tato,
sem algo que o impeça
e súbito,

esse clichê de peito cheio invade,
esmorecendo os muros
da ExcentriCidade.

E dói desabrido, chega aos olhos
e num desbordamento tanto,
molha intenso

-corpo escorrendo
ainda
pelas pernas-

É o bicho mais feroz,
um cantochão aflito,
são os meus gritos procurando ecos
nas trajetórias dos cometas mais longínquos

e vibrando inversos,
desarmônicos, malditos.

É ele! Ah, ainda ele!

Um aleijão platônico,
carneando Prometeu na minha frente,
consumindo minha pele, alma,
quintessência jônica.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Intuição feminina

A todo momento, cutucando a unha e mordendo-se por dentro, tinha a impressão de que algo errado estava prestes a acontecer.

Após muitos erros, quando ele não aguentou mais a desconfiança e fugiu, ela esvaziou-se de dúvidas e, por fim, encheu a boca de razão para falar que já sabia.

sábado, 7 de novembro de 2009

Navegante


navego em falso objeto
de desejo e de prazeres
sob luas que minguam
e escapam entre dedos

navego em falso segredo
de pele que arde e treme
em loucuras de seios leves
em breve resvalar nos lábios

navego em falso devaneio
de mãos que tocam coxas
buscando a mais intensa
delícia que a vida rege

navego em falso sonho
de corpos que se enlaçam
num laço de gozo e asco
ao timbre d’amor sedento

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

O menino e o mundo

O menino caminhava pela calçada.
A bola na mão era azul
Azul como o mundo
por onde o menino andava.

Na cabeça do menino
a bola azul era o mundo.
E ele caminhava com o cuidado
de quem traz nas mãos
a humanidade.

O mundo,
nas mãos do menino,
é livre.
Livre como seria qualquer mundo
nas mãos de meninos.

Parado na calçada
ele me sorri.
Ele me sorri e na verdade
me acorda.

E só então continua caminhando
com o mundo nas mãos.

domingo, 1 de novembro de 2009

no quinto sonho
as janelas estavam fechadas
e o chá era servido frio
não gelado
calados e sem juras
não se olhavam
o sentido era verde
como o sache
dentro de suas xícaras