domingo, 28 de fevereiro de 2010

Cena Noturna

Começaram a brigar tarde da noite.

Acordei com o rasante voo da televisão a globalizar a queda janela abaixo.

Depois, tímido atirou-se por trás da cortina, a coleção de CDs da MPB – talvez uma tentativa de fuga. Vi Chico Buarque cantar “Rita” ao cruzar vertiginosamente por minha janela, seguido por Joplin rouca e louca.

Pensei na complementação dos opostos

Ouvia a voz de um gritar ao outro em acusações quase obscenas.

Cenas de um cotidiano...

- FAMILIAR – gritava o vizinho do décimo. E não sei se em referência ao cotidiano ou ao prédio.

Passava das dez quando os corpos tombaram.

Primeiro um e logo o outro, como se mão do primeiro carregasse o segundo.


Dois tuns!


Já passava das dez.

Silêncio...

Apenas os olhos de um gritavam aos olhos do outro...

Vermelhos obscenos.


- Graça Carpes -


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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Troll

XII
16/05/03
max ernst



Eu sou um troll!
Meu império está desperto,
crescendo, crescendo!

Minha música é o som da faca dos açougueiros;
o tintim no copo de cicuta é a minha música;
minha música é o som do bombardeiro!

Gosto de comer o vômito dos bêbados
e lamber os restos dos animaizinhos que morreram nas hortas.

De minha cara enfezada as criancinhas fogem.
Agrado em palitar os dentes com o fêmur de meus inimigos
me satisfarei quando, com a mão bruta,
arrancar cada feto de dentro de cada útero!

Eu sou um troll!

* do livro Memórias à Beira de um Estopim , 2005

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Oh bandeira brasileira!
Ainda te amarro na cabeça
E saio fazendo besteira!

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Só ...tão

Vivo abarrotada de almas,
tanto novas quanto usadas,
pra mudar conforme o caso

(se uma suja, jogo fora,
quase nunca lavo).

Algumas são falsa-cor,
vermelhas,
cheias de prendas e laços,
penduricalhos mil costurados,
que já nem sei mais o nome.

–tenho um motivo fajuto
e sempre o sapato perfeito
pras feras que me consomem–

Há uma de esguelha, há outra rodada,
envolta em fuxicos, ismálias
e finas organzas de musas

–amélias no forro, teresas na barra–

há uma fechada, há outra que ousa,
e não tem botões, nem amarras,
rendada com puta de esquina.

(troco a cara e o vestido
quando aquela não mais me fascina).

Em noite de gala,
quando o amor desvestido me despe,
me visto com fendas
e tons de imprevisto.

Acordo no dia seguinte, num sopro,
já pano de vela que encontra
seu porto

- alma á espera, com jeito de corpo -

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Flores para los sueños

 
(maio.2008)

Toda a vida sonhou com uma mulher em meio às flores. Sempre a mesma, poderia reconhecê-la em qualquer lugar.
Até o dia em que a viu de relance, mas já estavam fechando o caixão.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Tulipas negras



Ouvia, via e sentia a tristeza alheia. A angústia lhe estufava o peito, o ar ficava pesado e os ombros recolhiam-se enquanto as mãos passavam pelo rosto suado.
E foi assim em todas as vezes que se deparou com as tulipas negras, desdentadas, bocas do desespero.



quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Colos

EU QUERO 

Quero o seu sorriso
preciso

Quero além de amante
ombro amigo

Quando eu virar criança
fitando teus olhos
quero muito
colo

E ao olhar de novo
protegido

Aninhado e me sentindo
um menino

Sentir um novo sopro
vindo de você
me fazendo
crescer

Ser o seu homem
abrigo

Salvaguardá-la  de todo mal
dos perigos

Ser seu cavaleiro andante
envolvê-la nessa hora
meus braços
agora

NINAR VOCÊ 

Joakim Antonio

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Insólito

Não conseguia dormir. Algo me incomodava. Sentia-me mal como se houvesse uma infecção pustulenta sob minha pele. Um estado febril de excitação misturado ao frio da espinha que voltava a cada instante. Os lençóis não me continham. Os pensamentos não me deixavam. A mente voando feito louca, viajando pelos locais mais obscuros de minhas memórias. Medo, dor, dúvidas. Parecia haver uma camada fina de areia sobre o colchão, meu corpo reclamava pequenas bolhas doloridas e minúsculas. Pulei da cama. O corredor estava em silêncio. Pelo apartamento, figuras disformes e escuras dominavam o cenário. Eu vaguei, sonolenta, pelos cômodos, misturando real e irreal, minha mente pregando peças. De repente me vi. Alta, branca, cabelos bagunçados, parecia saída de uma mente insana. Olhava para mim como se nunca tivesse me visto antes, como se eu fosse a criatura mais estranha deste mundo e do outro. Eu não tinha entendido nada até aquele momento. Brigamos. Meu jeito racional e sempre controlador conflitava com meu instinto selvagem e não domesticável. A sobriedade entrava em atrito com minha insensatez. A mente sã não entendia a sonhadora e a taxava de doentia. Digladiamos. Uma queria tomar o lugar da outra, como se ambas fossem de lados diferentes. Quem eu era já se confundia com o que ela queria que eu fosse e o que eu necessitava que ela fosse se misturava ao que ainda não era. Eu sabia que se não resolvesse essa luta, não teria chance de resolver a guerra inteira. Nós nos encontrávamos todas as noites e todos os dias, até quando manteríamos esse impasse eu não sabia. Ao final de tudo, como sempre, terminamos na cama, dormimos juntas, era nossa maneira de entender que éramos uma só. E nós realmente o éramos, ganhando e perdendo as lutas pra nós mesmas, para entendermos que só tínhamos uma à outra.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Marcas

Trago como um distintivo
estas linhas sobre as costas
meio retas, meio tortas,
gravadas em sangue vivo.

Se entrecruzam cicatrizes
sobre meu dorso marcado
de alto a baixo, lado a lado.
"Mas que absurdo!", dizes.

Explico o que aconteceu:
Mulheres têm longas unhas
E algumas usam as suas
como ferro de marcar: "Este é meu".

Se me importo? Ora, não!
Reconheço, claro, a posse
e mesmo que assim não fosse,
são um selo de aprovação.

São testemunha silenciosa
de noites de pouco dormir
que deixa como souvenir
minha amada quando goza.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Cavalos Azuis

Franz Marc - Cavalos Azuis


"Um poeminha atormentou meu cochilo
murmurando a meus ouvidos
que, quando velho, em minha caduquice,
poderei ter cavalos azuis...


Mas, o que fazer,
se já agora,
eu os tenho?"

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Digressão Noturna


Primeiro é o sono,
depois o peso.
O braço pesa,
as costas pesam,
as coxas pesam,
as coxas pesam é como…
Como se as cobertas afundassem,
mas mais fundo vai um tipo de sono
bêbado
que ainda não é lucidez
e sim um misto de preguiça
com sonhos inacabados.
Depois são os pensamentos
ainda murchos
que se emendam com os monstros
e com os desenhos
de ontem,
de ateontem,
e de terça.
Não se conectam,
Não.
Não mesmo.
Vão e vem,
descendo das histórias que serão emendadas daqui alguns minutos.
Então é a espera.
A espera da indecisão
e assim fica até a bechiga doer e o pênis ficar duro de vontade de mijar.
Então a perna formigando mexe
e vem a dor de cabeça.
Uma dor de quem não quer livrar-se da cama
quente
e daquela toxina
que é cheiro
o cheiro úmido
de debaixo das cobertas.
Depois… Depois é o arrependimento
de não ter feito qualquer coisa,
qualquer coisa,
qualquer coisa antes
que a dor de cabeça viesse
e que o vento do sono inundasse novamente o corpo amortecido.
O que sobra é força e falta pra levantar. Diante do fato que o dia acabou enquanto eu dormia e a noite. A noite. Antecederá todos os fatos.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Opostos


Gosto de Opostos
daqueles com Gritos
ou Silêncios
no meio da Multidão

Delicio-me ao ver
a Beleza da Dor
ou o Visco que há
na singeleza do
Fim do Amor

Rio-me da Dicotomia
entre a Paz e a Guerra
arriscada pelo Estopim
de uma Centelha

e

Valho-me da Certeza
que o Tudo
completa o
Nada

E que sem os Opostos
o Mundo se Acaba


Caroline Schneider

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

poema para um mundo moderno



estou prestes a não ligar
estou fora
estou prestes a deixar pra lá,
a baixar a cabeça,
ir passear achar o silêncio.
estou cansado de tanta coisa rápida e
absurda moderna exorbitante.
estou prestes
estou fora,
estou
a ver as coisas sem
tanta importância,
estou...

foto: isaias de faria

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

amor























serviu-me a flor como prato principal. ensinou-me arrancar pétala por pétala até chegar ao coração. esse sim, era iguaria fina desconhecida ao meu paladar que aprendi a degustar e salgar por suas mãos teatrais. no décimo terceiro capítulo ela descobriu que a alcachofra não é flor e sim inflorescência, como o abacaxi. juntou os papéis de seu último pretenso livro e os jogou pela janela, rindo! um copo com uísque, não em grande dose mas o suficiente para fazê-la dormir.