sexta-feira, 29 de maio de 2009

macondo


“Entretanto, antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra. " 

O quarto estava frio, e pela janela, vi que a chuva continuava a cair. Chovia sem parar e eu me sentia um habitante de Macondo. Podia jurar que os lençóis ao meu redor estavam mofando. Levantei e escancarei a janela, deixando que o vento úmido lavasse os cheiros, as memórias e os desejos. Devo ter ficado muito tempo ali pois quando me voltei ele estava lá me olhando com um ar preocupado e ao mesmo tempo irritado.

Fechei a janela não tanto por ele, mais pelos livros. Ele pegou um lençol e me envolveu num abraço que fez morrer todas as frases de adeus que eu tinha ensaiado. Era um daqueles gestos de carinho que faziam com que eu me enredasse cada vez mais naquela cama, naqueles braços, naquele beijo. Esses pequenos gestos me desmontavam. Logo eu que era diplomado em histórias sem futuro, diplomado em solidão assistida.

Ele me apoiou e seus olhos agora mostravam apenas carinho e preocupação. Comecei a suar, talvez fosse a febre. Passou a mão pelo meu rosto e senti minha cabeça rodar. Outro carinho desses e eu estaria perdido.

domingo, 24 de maio de 2009

Um último hot-dog para Saddam Hussein

Quem hoje vai à forca
não é apenas aquele que o nome serviu
para nomear os cães raivosos,
apelidar os agressivos e tarjar os aptos à violência.

Quem hoje caminha para a mais justa das mortes
– talvez uma morte muito leve
para o peso de seus crimes –
não é apenas aquele que com seu bigode
é estereótipo de ditador,
pintado nas telas de Hollywood
como uma espécie de Carlitos satânico.
Avesso de herói: bufo,
cômico,
flatulento.

Sim, a sentença é categórica:
não lhe darão o balaço que merece,
um terceiro olho na testa,
posto que é soldado e
como tal deveria ser executado.

Será ao modo dos medievos:
com corda no pescoço,
língua roxa, baba morna e espasmos finais terríveis
de gado em matadouro:
platéia rompendo em aplausos diante de um
cadáver que será servido em banquete
à opinião pública.

Suplício televisionado aos países civilizados do globo,
com direitos exclusivos cedidos às grandes redes
de entretenimento e de news:
jornalistas dentro de ternos cinzas
confusos se devem sorrir ao noticiar o fato,
ou se graves como guarda-chuvas a degola
mereça uma voz empostada e imparcial.

Sua morte sendo noticiada em meio
a propagandas de programas esportivos,
anúncios de produtos para o combate às rugas
e reclames de cartões de crédito
com juros assustadoramente baixos e humanos.

Cidadão Kane organizando a grade,
negociando com os patrocinadores a divisão
latifundiária dos intervalos supravalorizados pelo show –
todos suplicando por closers
e recursos cinematográficos
que remeta o expectador à necessidade
imediata do consumo.

Letreiros enormes de pasquins anunciando,
equivocadamente,
o bota fora de Saladino,
o enforcamento dos muçulmanos,
o sumiço do Profeta –
pequenas matérias de última hora
confundindo o Corão

com o manual do terror fundamentalista.

Esse que em juízo
mostrou descrença diante de um tribunal
sem autoridade para julgá-lo
esteve ainda ontem escrevendo poemas,
não sobre as armas químicas
que utilizou sobre seu próprio povo,
mas a respeito de como o homem
deve proceder com as mulheres:
pequenas odes machistas, sobre cama & cozinha.

Esse homem que com toda a razão
renega o promotor, os jurados
e o sistema armado para condená-lo,
há poucos dias não passava de
um simples velhote imundo,
piolhento,
enfiado num buraco no deserto,
fugindo das águias estadunidenses
vindas dos sopphing-centers do norte,
vestidas com o que há de mais moderno
nas grifes bélicas.

Esse homem com uma agenda odontológica repleta
de compromissos com a obturação das cáries
e a operação dos canais
em nada recordava
o senhor distinto que de farda
convidou seus filhos para assistirem
o assassinato de seus opositores.

Em nada lembrava
aquele que esteve metido em golpes de estado
e no massacre dos próprios genros.

Em nada recordava o inteligente e cruel ser
que empreendeu uma constante guerra no Golfo Pérsico.

Não recordava o aliado dos xás do Irã
que intentavam com a guerra barrar a revolução islâmica.

Não recordava aquele que simplesmente
decidiu pela anexação do Kuait para matar –
mergulhado em sangue –
a sua sede de petróleo.

Duvido que algo no mundo mude
após o espetáculo pop de sua derrocada
(que nada tem a ver com a derrocada do povo iraquiano,
que humildemente resiste até a vitória):

a tv se cansará de noticiar
cristãos fundamentalistas
comemorando a vitória da democracia ianque;

se cansará de discursos judaicos inflamados
defendendo a propriedade privada
e o neoliberalismo;

se cansará dos palestinos ortodoxos e dos brandos
discutindo, muitas vezes com a voz das baionetas
e a língua de fogo da AK 47,
os pormenores para uma convivência dicotômica.

E a paz no mundo será a mesma paz que há agora,
pois hoje cai um genocida,
mas é outro que o derruba.




*

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A HORRÍVEL SENSAÇÃO DE SER VICE



Domingo, 03 de Maio de 2009.

Estava na Bienal do Livro de Goiás, atuando no corpo-a-corpo, vendendo a Antologia do Bar do Escritor de forma guerrilheira, abordando as pessoas, oferecendo literatura, praticando a arte de escrever de forma física, full contact. Como era o último dia da feira, muita gente estava aproveitando a queda dos preços e as vendas prometiam. Os corredores cheios de visitantes, expositores fazendo contatos, leitores conferindo estantes, editores sondando escritores; estava empolgado com a possibilidade de fazer bons negócios, mas também estava com a cabeça quilômetros dali. Mais exatamente no Maracanã, onde rolava Flamengo e Botafogo. Mas como deixar a primeira participação em uma feira?
Conversei a respeito do assunto com o Jurandir Araguaia, o escritor que havia cedido o espaço para que pudesse expor meu trabalho e dos companheiros do BDE e chegamos à conclusão que a coisa mais profissional a fazer era continuar com o stand aberto, pois o evento ainda se estenderia até as 18:00 h, acabando no mesmo horário que gritos de “É campeão” estivesse nas gargantas de diferentes torcidas em diferentes estados.
Mesmo sabendo que a era a coisa certa a se fazer, ainda assim ficava com o pensamento longe, imaginando a quantas estaria a coisa. Conversava com as pessoas, apresentava os livros, mostrava diversos títulos, falava sobre os autores, enumerava a origem de cada um, mas todo momento a imagem de uma bola cruzando o espaço das traves, indo morrer gloriosamente nas redes ficava rondando a mente. Vendi cinco livros enquanto rolava o primeiro tempo e em quase todos dei uma vacilada na hora de autografar: caneta que fura página, erro de data, até o ápice que foi a troca de nome em uma dedicatória. Tenho uma habilidade natural em ser desastrado, mas assim já é demais.
Um amigo ligou durante o intervalo, tomando todas, estava alguns coqueiros pra lá de Marrakesh, mas no ritmo dos 2 x 0 do Flamengo ele atravessaria a África toda rapidinho. Imaginava isso enquanto comentava o mercado editorial para um jornalista que buscava respostas sobre o futuro da literatura contemporânea no século das comunicações instantâneas. Bom, era isso ou qualquer coisa que tivesse um título extremamente grande e que se mostrasse aparentemente culta.
Alguém de um stand próximo conseguiu descolar uma televisão e “o pobre entretenimento das massas invadiu o sagrado solo da literatura,” segundo as palavras de um poeta performático que estava presente. Aproveitei para espichar o olho e ver se conseguia alguma informação relativa ao duelo no Maraca. Em rápida sucessão, um uniforme alvinegro corria para o lado do campo, várias pessoas pulando na arquibancada. Sinal de gol. A tensão começou a se apossar do resto de pensamento que ainda tinha.
Como a imagem estava um tanto truncada, um dos presentes resolveu agir mudar a configuração da coisa. Acabou derrubando a tevê; um baque surdo no chão, algumas fagulhas no ar e dezenas de torcedores imaginando milhares de formas dar fim ao infeliz.
Voltei então para a literatura novamente. Recebi a visita do escritor e jornalista Valdivino Braz, que propôs um negócio para lá de generoso: dois por um. Minha pequena biblioteca particular saiu no lucro. O papo anarquista e amistoso me devolveu a serenidade para dar tempo ao tempo e saber do resultado mais tarde. Na verdade, cheguei até a esquecer a partida. Acontece que o velho guerreiro das letras teve que puxar o carro. Até os bárbaros vão para casa uma hora.
A ansiedade voltou para ficar, assim como o Roberto disse um dia. Perguntei a uns dois ou três passantes e nada de notícia. Foi quando vi um sujeito com um radinho de pilhas colado ao ouvido, daqueles que a gente nem acredita que exista mais. Vinheta de programa de esportes derramando-se para fora das minúsculas caixas, batata: o cara com certeza saberia do resultado. Adiantei-me com fome de informação, coração aos pulos e os ouvidos apurados para não ter que perguntar mais de uma vez (tem gente que não gosta de responder mais de uma vez, vai que fosse o caso). O elemento me olhou profundamente no fundo dos olhos e, como eu não portava nenhum adereço que demonstrasse minha filiação futebolística, arriscou: Botafogo 3x2, de virada. E saiu andando com jeito de quem estava em uma feira de livro. Na Alemanha.
A espera havia acabado, afinal. Mas a feira do livro ainda continuava, e como em um passe de mágica várias pessoas adentraram o stand ao mesmo tempo, minha atenção teve que ser toda dedicada a estes. Mesmo naquele estado bagunçado da mente ainda consegui fazer as mesmas apresentações sem demonstrar qualquer alteração no humor; um inglês em frente à rainha não teria feito melhor.
Finalmente a feira acabou, começando assim o desmonte. Juntei livros, decorações, cartões, contatos; ainda havia muita coisa a fazer, mas o corpo apresentava um cansaço descomunal. E nem mesmo o convite de um amigo botafoguense (que também estava na feira, ajudando no stand), para tomar umas cervejas às suas expensas me animava. Estava esgotado, física e mentalmente. Decidi ir direto para casa. A noite caiu rápido, e enquanto tirava as coisas do Centro de Convenções os buzinaços dos vencedores saíram das ruas principais, indo para outras paragens. Peguei aquele trânsito de domingo-tarde-da-noite, inóspito, silencioso e calmo. Menos pelos gritos do meu carona, animado com a conquista.
Mas alguma coisa ainda me encucava e não sabia o porquê. Parecia que algo não estava exatamente no lugar em que deveria estar. Foi quando parei isoladamente em um semáforo que descobri. Ao meu lado, parou uma moto, com um casal jovem. Ambos vestidos com as cores da Gávea e com uma estranha animação no rosto, que pude perceber mesmo por entre a viseira do capacete. Não resisti e disparei a pergunta para a moça que ocupava a garupa:
- Aí, quanto ficou mesmo o jogo?
- Você não viu? – o rosto dela irradiava alegria – Um jogão! 2x2 no tempo normal, pênaltis e o Mengão levou!
Soltei o berro preso na garganta enquanto que no banco do carona a felicidade tomou asas. Ia começar a tirar o sarro mais pesado do planeta, cantar todas as marchinhas que sabia e as que ainda iria inventar, quando ao ver a expressão de perplexidade na face do outro (até então tão enganado com o resultado como eu), vi ali a mesma apatia que havia me corroído por mais de duas horas. A horrível sensação de ser vice. Meio sem saber o que fazer, só me ocorreu na hora de citar os versos de Djavan: “Ainda bem que sou Flamengo”.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Acode-me a náusea

Abrupta transmutação
e quase me desperdiço
bálsamo sobre tua chaga

Nenhuma redenção emerge
do ímpeto que me traga

Rememoro teus pecados
num rosário de espinhos

e perfumes

Mas a lucidez agride
cada sonho que elaboro

Acode-me a náusea

Transeunte permeável
cuja humanidade desvanece
num lapso
de profunda mortificação

eu passo

Iriene Borges

terça-feira, 12 de maio de 2009

Urubus

Ao notarem alguém em dificuldade, não se contêm e estendem a mão.

Com a mão estendida e o enquadramento ajustado, clicam o momento, tão intenso e visceral. "Uma foto sem preço", dizem os sujeitos sem valor.


sexta-feira, 8 de maio de 2009

Pra não dizer que não falei das dores


Ainda não chegou o tempo
da colheita de estrelas
e te vejo apressado em luzir

Distraio-me no balé esverdeado
de vaga-lumes brilhando pequenos
e em bando

Você semeia engano,
eu escolho sorrir

O egoísmo é coisa natural

E quando voltar a me furtar
estenda flores em meu varal



Ps: Imagem retirada do blog: http://reclinada.blogspot.com/2008_10_01_archive.html

sábado, 2 de maio de 2009

Outono

No outono solitário
baila a folha
ferrugem, descarnada.

E vem a luz
rasgando a estrada
como revelação de virgem.

A tarde sem dono,
como se não existisse nada,
velou o vôo da vela, da folha,
amarelada.
Vertigem.

Rodopiou o menino
na beira da estrada.
O trem sobiou.
Soprou a folha o vento seco.
Estiagem.

Como o beijo
teve gosto de outono,
o desejo um dia madurou
em primavera.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Carta a Kerouac

Repare, meu caro Kerouac, saiba que aqui a vida anda desoladora e como você sobrevivi aos consórcios por anos, e eles assim me proporcionaram vinhos baratos e leitura cara! Os cigarros vingavam-se de meus pulmões e o ar nunca me faltou, embora a comida de bandejão tenha me feito regurgitar pensamentos sartreanos! Cá ainda ouço nossa canção, aquela de Bob Dylan que inspirou tantas involuções! Tenho saudade apenas do tempo que nos sobrava e de seus olhos de paisagem quando eu falava de sentimentos pouco nobres!
Aquilo sim era um Royal Straight, baby!
E depois de esgotar as vontades vãs tento não me apegar às futilidades de uma vida vazia, mesmo sabendo que as pequenas epifanias nascem desses abusos frívolos e descartáveis.
O amor para mim tem cheiro de látex e gozo puído.
Mas odeio sentir-me dependente e percebo que quero é espatifar qualquer vínculo, qualquer vício, mas acabo me entregando a eles com mais violência do que quando me apeteciam as dependências.
As garrafas secas lanço contra o concreto armado, as bitucas de cigarro pisoteio para se apagarem, mas compro tudo que desdenho mais de uma vez.
Até quando vou poder pagar pra ver?
Suas alegorias insanas me trazem lembranças do tempo em que as esquinas me eram menos sombrias e fétidas. De quando os olhos alheios não me causavam asco e não me chicoteavam danos.
As humanidades nunca me proporcionaram pão e vinho e se não fosse minha capacidade de abstrair talvez não tivesse sobrevivido.
Mesmo assim, Kerouac, doei-me a seus devaneios por altruísmo, de maneira simples e cívica me coloquei em seus braços magros e jovens como quem se entrega com gosto ao seu carrasco.
Nos becos o caos, a selvageria, a desordem e o atentado ao próximo sempre me acompanharam de perto, mas era jovem e inconsequente, nada me atingia em cheio!
Nós nunca almejamos arco-íris ou chuva de meteoros!
Enquanto você me esperava em casa com a perna quebrada, por tantas rasteiras da vida, eu me vendia por bebida e diversão. Por horas, dias e anos estranhos meteram a mão por baixo de minhas saias arrancando-me ralos pudores, deixando esmolas e levando gozos recolhidos.
Não estou reclamando, aprendi contigo a não me arrepender de nada! E o vil metal que troquei por mim comprou-me ovos fritos, conhaque e companhia sua.
É certo que dinheiro não compra tudo, mas nos dá a dimensão quase completa do possuir, o que creio seja o mais próximo dessa tal felicidade utópica.
Você nunca foi óbvio e por vezes se zangava com minhas serenidades, mas o que posso fazer?
Por mais que queira não ser mulher, por mais que negue essa condição imposta e desonre essa tal feminilidade, ainda sou mulher e tenho sentimentalidades.
A tala na perna e o andar desajeitado te deixaram mais frágil e as impossibilidades te fizeram um pouco mais meu e isso te desagradava.
Não pense que desconheço tal sentimento, você sempre me aprisionou em sua boca, baby!
Foi bom ter seu corpo entregue aos meus cuidados, naqueles dias.
Banhar e alimentar o homem que venerei apaziguava as dores de faltas e ausências.
do que não senti por não gerar ou parir, creio que tive ao acolher-te.
Não digo isso com amor, o sentimento de posse é mais forte que qualquer outro, fui dona de alguém, mesmo que por pouco tempo.
Temos nossas brevidades pérfidas e admito que gostei de ter-te, naquela época em que não tinha quase nada além de mim.
Conheço bem sua filosofia do tudo ao mesmo tempo, agora. E sei que se irritava em ter apenas duas mãos para abraçar esse mundo gigante.
Nunca dormia antes de você e quero que saiba que ouvi todas as suas orações para Dean Moriarty, nosso deus-pai.
Sabe, eu já quis tudo ao mesmo tempo e não aguentei o tranco, nem Dean aguentou e acabou como pastorador de carros numa garagem qualquer em Nova York.
Já estive no chão, na lona, sei bem a sensação de um direto cruzado, o sabor do sangue na boca e o gosto que a derrota tem. E às vezes arroto com o gosto dela na boca!
Mas a derrota não me traz desmerecimento, ela é minha única e verdadeira glória, baby!
Ainda amo você por me fazer lembrar do que vivi quando tinha a sua idade e para quem não acredita em deuses isso é bento!
Sobraram-me apenas alienações e as recordações das viagens alucinadas que fizemos.
Não tenho mais com quem compartilhar minhas sandices e a vida desregrada que levo, estou entregue ao álcool, às drogas e aos viscos sexuais.
Outrora pensei em regressar ao nosso canto e olhar-te mais uma vez nos olhos, como quem anseia se encontrar fora de si, mas já desisti.
Não somos os mesmos, baby!
Embora todos os homens me tratassem bem e me fizessem feliz por algum tempo, as mulheres constantemente lançavam-me olhares de fúria e desdém, não que eu procurasse a aprovação delas, mas sempre fui rechaçada como um demônio entre as santas imaculadas no Paraíso.
No fundo sinto que queriam ser como eu, mas moças bem criadas não suportariam as cargas que já carreguei e não se sujariam como já me sujei. Mas elas aguentam calcinhas, nunca gostei delas, marcavam minhas roupas e o que é pior, dilaceravam minha carne. Melhor mesmo era não usá-las e quando alguma senhora polida me olhasse com descaso abaixava-me perto de seu cônjuge para constrangê-los em público.
Tenho porte, mas não tenho classe,baby!
A decadência sempre foi a menina de meus olhos, mesmo que eu quisesse progredir sempre acabava me lançando na sarjeta, de onde jamais deveria ter saído. Por mais que gastasse tudo o que tinha em sapatos caros, cheirava à bebida barata.
Os sapatos vermelhos e as meias arrastão foram meu uniforme por anos, nas ruas aprendi a não esperar nada do outro que não fosse um direto cruzado.
Em meu caminho sempre houve quem quisesse só me derrubar.
Lembra de nosso último Natal juntos? Recordo que me deu sapatos vermelhos envernizados, daqueles caros que sempre gostei e eu te dei luvas de boxe.
Os bebês deveriam ganhar, ao invés de chupetas e doces, luvas de boxe e aquele boneco “João-bobo” para aprenderem golpear desde cedo.
Tenho braços finos, olhos dormidos, uma boca enorme, minha sorte são os pulsos firmes e a respiração constante. Mas o que derruba é o álcool, esse sim diminui as dores e os dias de vida, aliás, elegi a bebida como mãe-protetora, ela apóia, dá colo, esquenta o peito e atenua a visão dolosa do mundo.
Ainda calço aqueles sapatos, como que se batê-los e repetir em voz alta que “não há lugar melhor que minha casa” e voltasse a sentir a garoa das noites menos infelizes que esta.
Nunca me iludi com saudosismos baratos, mas sinto saudades do tempo em que estivemos juntos, tinha companhia e assunto depois do sexo. Com quem mais discutiria Maiakovski depois de trepar? Sexo bom, diga-se de passagem.
Perdi a conta de quantas vezes preparei o revolver e quis reduzir minha vida de forma simplista, como Maiakovski fez, quem dera tivesse tido coragem!
Optei pelos sacolejos das viagens, as caronas com estranhos, o sexo alucinado, escolhi dissolver fronteiras e perverter o cais, ir além do que esperavam de mim. Preferi magoar.
Gostava do cheiro de sua jaqueta surrada que me aqueceu durante algumas noites, embora preferisse seu corpo. Mas nem sempre pôde estar comigo, o mar chamava você de tempos em tempos e eu ia ao porto ganhar a vida na espera de seu aroma em mim.
Assim nos deixávamos vaga e dolorosamente.
Trazia-me galhos de presente, um a cada chegada, alguns floridos outros estéreis, mas eles vinham com um toque de dúvida.
Havia mais de uma razão para viver naqueles tempos, embora aquela arma dentro da bíblia hora ou outra me desafiava a brincar de roleta russa e ela sempre me deixou perder!
Apressados e quase sempre atrasados nos tocávamos e nos deixávamos sós.
Hoje encontrei um galho seu entre “O proletário voador” e “A plenos pulmões”, sangrei.
Que hora é melhor que agora? Nesta hora que falo, mordo e sangro!
Talvez ainda sinta saudade de hoje, dessa carta, desse derramamento espontâneo que me deixou mais frágil.
Mas o inferno não pode esperar, como nós é tudo agora ao mesmo tempo.