sábado, 30 de janeiro de 2010

PINGUÇU

*
(no boteco Terra)
uma dose de cachaça
para nosso máximo esforço

outra dose de cachaça
para esse mínimo salário

outra dose de cachaça
para debochar dessa desgraça

e torresmo batata e lingüiça
para tirar o gosto de suor
e sangue da língua

e outra dose de cachaça
para tirar o cansaço da cara

e outra dose de cachaça
porque mesmo assim viver tem graça

e outra dose de cachaça
porque a tristeza vem e não me abala

e outra dose de cachaça
pois a esperança vem e me embala

e outra dose de cachaça
para nossa força que não se acaba

e outra dose de cachaça
para a amizade que aqui não é falsa

e outra dose de cachaça
porque aqui não há distancia,aqui se abraça

e outra dose de cachaça
porque mesmo na batalha damos risada

e outra dose de cachaça
para essa risada que é escudo e espada

& de saidêra
uma dose de paz e solidariedade
p’ra ‘quele que o outro mata
o chame para compartilhar
uma garrafa de cachaça .

MG

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

efígie



cansado de mundo
guerras e presságios
vem e conta sonhos
deixa essa efígie
que pressinto
nas tardes perdidas
em que divagas

ouço tua voz
vem do mar
num sussurro

não explico
só te escuto
num segundo

não discuto
miro teus olhos
incendiados de promessa
vazia e dolente
plantada no azulejo
dessas viagens viúvas

estranhas remessas
desejos e desvarios
que o vento sopra

beijo,teu cenho
de súbito, tristonho,
com temor, prevejo
com esse ato
que é hora de ir

domingo, 24 de janeiro de 2010

O mesmo título de uma obra de Knut Hamsum


Seria aceitável se estivéssemos

firmados em um deserto de sal

devorando o pneu dos tratores.


Se fôssemos aniquilados por

terríveis gafanhotos bíblicos

estragando os olhos das mulheres.


Seria aceitável se nos achássemos

em terras incultas dentando os arados

e enferrujando os ossos dos homens.


Se vivêssemos sobre um chão

diurético, por décadas incontáveis

afogando as auto-estradas e os silos.


Seria aceitável se nos restasse uma terra

imprestável para sepultar os chacais,

dia-a-dia corroendo as mãos das crianças.


Se habitássemos um solo indisposto,

nauseado das sementes, asfixiando o céu,

estrangulando a paisagem.


*

sábado, 23 de janeiro de 2010

Rotina

Sou a moradora do segundo andar, apesar de querer realmente morar no primeiro, de onde a vista é mais privilegiada. Você provavelmente não me conhece, assim como o restante dos meus vizinhos. Eu vivo aqui, só comigo, e não vejo problema algum nisso. Faço o que quero quando quero e ninguém pode controlar minha vida. Pensei em ter um gato, para me fazer companhia, mas acabei concluindo que seria trabalho demais. Estou sempre lendo um bom livro, e eles me garantem a companhia de que preciso. Gosto de ouvir Anita Backer tocando bem baixinho no CD player no final da tarde, quando me sento na varanda, bebo minha dose diária de vodka barata e fico observando o movimento dos moradores, entrando e saindo, vivendo suas vidinhas miseráveis. Alguns são interessantes, como aquele casal do carro branco. Eles saem todos os dias discutindo, e quando voltam pra casa, estão só risos. E eu me pergunto que tipo de rotina doentia é essa. A senhora do terceiro andar também me chama muito a atenção. Ela recebe muitas visitas de técnicos de todas as espécies: encanador, eletricista, aquele que conserta eletrodomésticos, o cara da TV a cabo. Todos eles aparecem com freqüência em sua casa, e ela os trata muito bem. Pelos barulhos estranhos que ouço às vezes, acredito que eles devam prestar muitos serviços a ela. Crianças não me causam curiosidade, por isso não tenho nada para falar delas. Há também um senhor de uns cinqüenta anos, que mora no oitavo andar, que sai todas as manhãs para passear com um poodle horrível e fica me olhando. Outro dia ele piscou pra mim e me mandou um beijo. Pobre homem, ele nem imagina. Os homens não me despertam interesse. Na verdade, eu gostaria de encontrar uma mulher que me fizesse todas aquelas coisas que passam em filmes de lésbicas. Esse é meu verdadeiro sonho, encontrar uma boa amante, para passar as madrugadas comigo fumando um cigarro na varanda e curtindo Sade. Muitas vezes gosto de ficar sentada nas escadas e imaginando o que as pessoas estão fazendo em seus apartamentos, do que elas gostam, o que comem. É uma obsessão estranha, mas sinto prazer em inventar vida para os outros. Numa noite dessas, estava muito quente e decidi ficar nas escadas ouvindo Aretha Franklin no Ipod, com meu copo de vodka e gelo, e ela surgiu. Aquela que eu sempre esperava, a minha amante fantástica. Era morena, de olhar decidido. Ela me pegou pela mão e me levou à loucura. É só o que posso contar, pois os detalhes são íntimos demais, e cabe a você imaginar, assim como eu imagino tudo o que você faz quando fecha sua porta. Você pode até cruzar comigo um dia pelos corredores, mas saberá apenas que sou a moradora do segundo andar.




visitem também: Os Letreiros

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A EX

Já era a terceira vez que ele dizia que a sua ex isso, que a sua ex aquilo, a musa do sexo, a deusa vaginal, aquela lenga-lenga toda.

Procurei o endereço da vadia na gaveta. Achei fácil... fui lá.

-Você, aqui? O que você quer?

Segurei-a pelo cabelo para ela não fugir, e meti a língua no meio da boca dela.
A pilantra devia ser bi, porque nem reagiu.
Transamos ali na sala mesmo, e acho que o meu namorado não deu muito nela não, de tanto que gritou e gozou. Uma cadela.

Me vesti depressa, a vadia sorrindo no chão.

-Onde você vai?
-Sei lá, não enche.

Voltei pra casa e terminei com o corno.
Realmente a maldita dava melhor do que eu.
Os dois chorando pela mesma mulher? Não dá.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Mãe-natureza

Acompanhando esses últimos acontecimentos climáticos no Brasil e e no Haiti, me veio a lembrança um minitexto que escrevi sobre a relação do homem com a natureza, que ultimamente não vem sendo tratada por nós como "mãe".

Esse textozinho foi um dos primeiros que publiquei no blog que criei recentemente. Postarei aqui apenas o link (aproveitando para que a turma aqui visite também o meu blog, chamado Prosas e Viagens).

http://www.prosaseviagens.blogspot.com/

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Ukma cantando meu poema "Aureolada"- Flá Perez



Aureolada

Eu tão anjo tenho andado,
que em mim nasceram asas.

O queme perde pro céu
é esse meu grande rabo
endemoniado

e minhas coxas grossas.

(repostagem de 07/01/08 com vídeo incorporado)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Tentativa n° 13

Prestes
Presa no poliéster
Uma língua de fogo pelos recortes
tatuou-me asas nas costas
ardor e ímpeto no corpo imbele

Eu sei
Eu sei
Antes que eu ascenda
à musselina furtacor
trocarei de pele


Iriene Borges da Silva

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Visita

Ansioso pelo encontro marcado, limpou a casa toda. Há anos o chão, finalmente descoberto da camada de poeira, não brilhava tanto - com exceção do chão da cozinha, que agora estava opaco, livre do óleo de fritura dos lanches rápidos. Alguns cantos que fugiam à vista ainda deixavam a desejar, mas seria pedir demais àquelas juntas desgastadas.

Após conferir cada detalhe dos preparativos para o jantar, pegou o porta-retratos na segunda prateleira da estante velha, o beijou, pediu desculpas e o colocou na gaveta. Poupou ambos do sofrimento.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Picadeiro

De frente pra plateia,
o cara equilibra rimas,
joga palavras pra cima
como quem faz malabarismo
com três motosserras ligadas
e seis granadas sem pino,
mas sabe que o público espera
é só pra ver se ele erra.
Só isso e mais nada.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

(...) Ficções esparsas e inacabadas


Condenado que fui à vigília, não temo a visita do ladrão, pois não haveria de vir enquanto não me ausento. Por isso, mantenho os olhos bem abertos e, fixo-os na fumaça que se expande. Vivo acocorado, prestando reverências às sombras. Minha vigília se faz sob um fiapo de luz, pois a incandescência me cega e a escuridão me assusta. É insuportável a ausência, porém, prefiro ocultar-me. Há muito tempo não tenho nome. Resumo-me a números. Talvez seja um desmemoriado que se perdeu obtuso. Talvez seja apenas a transfiguração de um ser desfigurado: obra inacabada que se viu ruir. Minhas mãos, porém, se alongam. Volteiam meu corpo num abraço mecânico. Em minha cabeça ecoam os sons das sirenas, alarmes, ruídos, batidas, estalos, estampidos. Tudo ecoa desordenadamente ferindo os tímpanos e a alma. O calor me toma o corpo. Castigo que escolhi voluntariamente em meu masoquismo. Todos os meus membros são o prolongamento da máquina. Eu, indecifrável robô, tenho sonhos mórbidos. Um olhar confrangente sobre os outros que, em fila indiana, esperam o seu prato mofado para, como eu, amofinar-se no constrangedor fazer diário.

Minha obrigação é vigiar. Vigio a luz para que não se apague; a porta para que não se feche; o ventilador para que não gire demasiadamente. Vigio o pó suspenso, a poeira, a fuligem. Vigio o bem para que não se sobreponha ao mal e o mau para que não destrua o bom. Vigio as frutas podres: Adão e Eva no jardim perdido.

Sou o olho que olha, o ouvido que ouve, a boca que fala, o coração que palpita. Sou tudo e nada. Um ser sem nome, sem identidade. Sou o vigilante: aquele que não dorme, nem repousa. Designam-me por um número de uma imensa cadeia. 1263. Sou eu. Agente 1263 do setor norte. Treinado e qualificado para vigiar – olho do olho do olho. Todos são números. Agentes qualificados, treinados para diversos fins. Abrem, fecham. Acendem, apagam. Enroscam, desenroscam. Tudo simultaneamente e sincronizado, numa mecânica inigualável. Todos sinergicamente unidos, embora afastados. Não se tocam, não se sentem. Não tem afeto ou afeição: são números, e, números não sentem, nem se reconhecem, pois números apenas se somam, se multiplicam, se dividem, se subtraem.

Não procuro me redimir de meus males. Foram causados a mim mesmo. Fiz do labor a condenação, prosseguindo em vigília. Não finquei os joelhos ao chão por não haver altar ante meus olhos. Não, não consigo enxergar magnitude na filha de Tântalo. Ela se gloria de sua abundância; como se bastasse a si mesma. Ela e sua descendência. Ela e seu cabedal do medo e arrogância. Engoliram-me, regurgitaram-me e, sobre mim vomitaram seu asco. Tu não és deusa, filha de Tântalo! Como curvar-me a ti, se nem a Apolo ou Juno, Zeus ou Hera, Minerva ou Latona, presto reverência? Logo tu, mortal, queres que me prostre? Não. Vai-te como veio desconhecida forma. Vai e deixa-me com meus destroços, submerso em meus escombros.(...)

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

no último sonho

conto que não há mais nada
a heroína é o cansaço
que arregaço em minhas veias
fundidas ao pó da carne

dilacerada e entregue aos mortos
vou seguindo teus rumos
agregando-me devoto
aos pesadelos que desconheces

na pupila dilatada o universo
que engana
na finitude humana salva-nos
a ignorante batalha vã
e a vitória do desconhecido.