
Então, não precisava de muito. Descobriu-se à deriva, à toa, enfim despida de sentimentos e dores. Só almejava que mais um dia terminasse. E correu e sorriu sem saber o motivo. Quis subir e descer escadas repetidamente sem parar para respirar. Viu-se numa esquina, alguns diriam que seria um impasse, mas ela não deu nome àquilo, nem tampouco se importou em explicar o que fazia ali. Sentia-se sufocada por seus cinco sentidos que não a deixavam em paz para encontrar as respostas. Não se lembrava das perguntas, mas quem se importava com isso? O mundo era grande demais para parar ali. Sensações que transbordavam de dentro do seu peito, como um mar revolto, um mar sem fim. Com emoções tão complexas sentiu-se plena. Poderia rabiscar algo, então buscou o velho diário, há tanto abandonado, e passou a contar-lhe aquela história que brotava de seus dedos trêmulos, aparentemente sem nenhum motivo, mas que ela sabia que tinha razão de ser. E ela queria que fosse real, ela queria contar, mas em voz baixa, só para o diário ouvir, contar que a história não era inventada, nem mesmo copiada de algum livro clássico, ou de algum filme água com açúcar que estava em cartaz. Queria segurar as mãos, abraçar, tocar, envolver. Era um dia frio demais, e não encontrou saída se não escrever, para registrar o fim de tudo que a motivou a chegar até aquele momento. Sorriu timidamente para a folha amarelada do diário, que permanecia mudo e inerte em suas mãos. Ambos tão teimosos! Despediram-se tantas vezes, e sempre voltavam, sem receio de não serem aceitos. Voltavam para o lugar que lhes apaziguava a alma, aquele mesmo canto vazio e acolhedor. Ela sabia que não precisava de muito, já que o diário sabia de tudo antes mesmo que ela escrevesse. Em momentos de loucura criara seus melhores personagens. E uma vez ouvira uma especialista dizer que “os artistas são seres diferenciados, que veem o mundo por uma ótica diferente das demais pessoas”. Ela também era assim, diferente, excêntrica. Não se encaixava, e para se sentir melhor, criava. Quando ela sentia a arritmia chegando, sabia o que tinha que fazer, e pagava a caneta, qualquer pedaço de papel que tivesse à vista e voava... criava asas... não era mais ela, não estava mais ali. Onde poderia estar? Em qualquer lugar do mundo ou do universo. Bastava abrir os olhos. Sonhos só precisavam de um empurrão para ser. E ela sabia que, lançando-os nas páginas do diário, eles tomariam seu próprio rumo. Enquanto não os colocava para fora, sentia a garganta secar e o ar rarear. Era libertador tirar de dentro de sua cabeça essas vidas que não queriam mais ser suas. Queriam viver além, e viveriam, pois ela os libertaria. Bateria de porta em porta para dar a cada um a vida que mereciam ter. E após tomarem vida na ponta de sua caneta, seriam existências independentes, e ela não poderia mais acompanhá-los para sempre... seria apenas mais uma assistente, telespectadora dos personagens que um dia habitaram sua imaginação. Eram deuses e demônios, exorcizavam e legitimavam seus pesares, suas alegrias e desgostos, cansados de viver naquele aquário, naquele mundo pequeno que se tornaram as folhas do diário, que antes, em branco, representavam um mundo sem fim, e agora, limitadas pelas linhas já preenchidas, não deixavam mais espaço para inventar vidas, nem criar sonhos malucos, ou pesadelos coloridos. Criaturas que tinha seus próprios amores e suas dores. Estranhos e loucos, lindos, enormes em sua pequenez. Delicados como o movimento das asas da borboleta e absolutos como a força do vendaval. Queriam doses homeopáticas de vidas, ainda que alheias, mas queriam viver, não pediam nada, mas sabiamque seriam importantes para alguém. É o destino, enfim. São gotas do oceano, são um dia na vida de alguém, um descontentamento. Personagem que vai, não volta, ela bem sabia disso, também sabia que contar histórias é quase como contar vidas, e que a certa altura, uma se funde com a outra e não há mais como voltar atrás. Agora que já não precisava de nada, as ideias fluíam para as folhas do diário empoeirado, tão fiel, e tão calado. Quando escrevia, ficava absorta e tomada por suas ilusões, alimentando seu desejo de criar e eliminar pessoas/personagens que lhe tapassem o buraco da alma, ou histórias que amenizassem a dor na ferida que nunca sarava. Cicatrizes que a traziam de volta à realidade. Realidade da qual ela fugia constantemente, para o bem de todos, e para o seu próprio.