quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A fungada do novo caudilho

No espelho, ele deu uma última conferida no visual. Impecável, como sempre. Sua acessoria era rigorosa, escolhia com cautela as roupas, para que estivesse sempre elegante. Lá fora, uma voz feminina, das tantas que o cercavam, chamou, dizendo que estava na hora. Ele não respondeu. O evento só aconteceria se ele saísse dali. Só seria “a hora” quando abrisse a porta. E ele não faria isso agora. Abriu a gaveta da cômoda e pegou o pó. Sobre a mesa, com superfície lisa e convenientemente polida, despejou-o.
Antigamente, nesse momento, seu coração estaria palpitante, como o de um garoto ansioso por uma grande noite. Ele ajeitaria a carreira com mãos trêmulas, nervoso pelo regozijo que encontraria. Porém, a afobação juvenil estava extinta. Estava tenso, sim, mas porque queria fazer aquilo logo. O que outrora constituía um ritual, agora era executado com o automatismo de quem monta seu prato de comida. Com gestos de um cirurgião afobado, ele organizou seu “caminho da felicidade”.
Organizada a fileira, nela ele se debruçou, aspirando com sede de algo que ele nem sabia o que era. Já tinha tanto dinheiro que nem se beneficiava com o permanente aumento de sua fortuna. Possuía status, era adorado por milhares. Nesse momento, uma multidão o aguardava e explodiria em louvores quando ele surgisse. Todavia, nada disso o entusiasmava. Nem mesmo a coca, que a cada cheirada era consumida em maior quantidade, o animava. Embora servisse.
Nesse tempo, outras vozes já haviam chamado, todas pedindo que se apressasse. Ele as ignorava. Olhou para o relógio, o atraso era mesmo significativo. Que esperassem! Era a terceira inauguração de obra só naquela semana. Dali há alguns minutos estaria diante das câmeras, cortando uma fita na frente de uma nova escola, hospital, ponte, tanto faz. Sorrindo.
Mas não agora. Antes, precisava deixar-se escorregar na cadeira. Ela estava tão confortável...

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