quarta-feira, 7 de novembro de 2007

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Acordara cedo. Entrara para o banheiro em silêncio. Um silêncio oportuno. Quando deu por si, ouvia a voz de Eleonor à porta, “Vai sair daí logo ou vai ficar esperando a morte chegar, pai?..” Permaneceu sentado na privada, com as mãos empalmadas ao rosto. Não respondeu nada. Não dera sequer um suspiro. Pensava nos anos que passaram logo. Nos filhos que cresceram e partiram. Na mulher que já fora desta para uma melhor. Seu olhar não espelhava esperança, afinal, o quê que um velho como ele quereria da vida a esta altura do campeonato? Eleonor voltou à porta e disse, “pai, vem tomar o café antes que esfrie... estou saindo para o trabalho, tem pão no pacote sobre a mesa e a manteiga já está lá... estou indo... vê se melhora esse humor!” Alberto pôde ouvir seus passos se distanciando na escada. Saiu do banheiro, pegou o vinil preferido. E, foi direto a faixa que mais gostava. O quarto se encheu de uma melodia que era capaz de tirá-lo do chão. A canção o transportava. “Cavalleria Rusticana” era sem dúvida a melhor composição que já ouvira. Uma profunda melancolia tomava conta dos acordes. Nessa profusão de instrumentos, o que mais lhe fascinava eram os gemidos do violino. Gemidos de ferir a alma. Deitou-se na poltrona. Fechou os olhos e viajava em cada compasso. O corpo estremecia numa compulsão de adolescente que conhecera o beijo. Levantou-se. Foi até a janela do apartamento e observou a cidade que se agigantava diante de seus olhos. O vai e vem dos automóveis na rua deixavam-no confuso. “Há tanta beleza aí fora...” – pensou seduzido pela música. Foi ao banheiro. Lá, ao espelho, observou os poucos fios de cabelo negros que lhe restavam. Tocou a face com a delicadeza das mãos, trêmulas. “O que era agora, senão um velho? Um ‘Sô Zé’ qualquer que ninguém imagina existir?” Talvez fosse alguém se houvesse realizado alguma façanha. Imaginou-se maestro daquela orquestra que ecoava pelo apartamento. Imaginou-se poeta, inventor de uma nova técnica estética, precursor de uma nova forma de fazer arte, mas era apenas um ‘Sô Zé’. Não tinha nenhuma noção do que era vida além dos portões da fábrica. Vivera todos os seus anos apertando botões, parafusos, arruelas e porcas. Como saberia o que é estética, poesia ou arte? O que poderia era apenas voltar à poltrona e ouvir em silêncio a canção que mais lhe aprazia. Talvez um livro acalmasse-lhe os ânimos. Diante da estante de Eleonor ficara embasbacado com o tanto de livros que não lera. Muitos nomes, títulos. Pegara o primeiro livro que sua intuição ordenara e abrira em uma página oportuna que dizia: “Quando o rapaz voltou, o velho adormecera na cadeira e o sol pusera-se já. O rapaz tirou da cama um surrado cobertor da tropa e lançou-o sobre as costas da cadeira e os ombros do velho. Eram ombros estranhos, ainda fortes apesar de muito velhos, e o pescoço era ainda forte também e as rugas não tão evidentes quando o velho dormia e a cabeça lhe pendia para frente. A camisa dele havia sido remendada tantas vezes que era como a vela, e aos remendos, o sol os desbotara matizadamente. A cabeça do velho era, porém, muito velha, e de olhos fechados, não havia vida no rosto. O jornal estava pousado nos joelhos, e o peso do braço segurava-o da brisa da tarde. Estava descalço."(1)
Sentira um calafrio. Porventura pegara um livro que falava do que estava sentindo. Ao imaginar a figura adormecida na cadeira, olhou para si mesmo. Espalhava-se pela poltrona como se a despeito das coisas nada pudesse atingi-lo. A canção se perpetuava no aparelho de som. Uma constante repetição de acordes, agora sem sentido. Levantou-se. Foi ao espelho e, com uma navalha começou a fazer a barba. Pensava em um homem descalço e com frio. Um homem que poderia ser ele, nos confins de qualquer lugar bem longe daquela monotonia. Não seria monótona a vida diante do mar? Solitário, sem amigos? Mas como assim? Nada poderia ser pior que viver em uma torre de marfim, isolado do mundo, isolado da vida e das pessoas. Ouvindo apenas as rusgas de Eleonor que em dias de fúria é pior que uma megera indomável. Terminara a barba e, decidido desceu as escadas, tomou café e, saiu pela porta da cozinha com o saco do lixo nas mãos. Alguns minutos depois, de volta ao apartamento desligara a chave do gás. Subira ao quarto e, sobre a escrivaninha se debruçou. Suas mãos trêmulas se puseram a escrever. Ficara por mais de meia hora escrevendo longas linhas que não escrevera a vida inteira. Em um envelope pardo colocara as folhas, deixando-o sobre a mesa. Aumentara o volume do som. Abriu a janela da sacada, olhando os transeuntes que diminutos caminhavam apressadamente. Despediu-se de tudo. Olhou distante, o horizonte a perder de vista. Caminhou até a porta do apartamento, enquanto a orquestra executava um allegreto. Desceu as escadas, parou um táxi e decidido disse: “quero que me leve para dar uma volta pela cidade, leve-me aos pontos mais interessantes, aos parques, museus, teatros – e, antes que partamos uma ressalva, preciso voltar antes das seis – senão minha filha, a Eleonor, briga comigo – ah... outra coisa! Quero ver o mar...”

(1) trecho do livro: “O velho e o mar”, Ernest Hemingway.

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