
Para David dos Anjos Marat
   
  No anno de nosso senhor de 1875,
  a nascente imprensa
  publicou num canto de página um annuncio
  que hoje me estarrece:
  tratava-se da fuga de um certo escravo,
  de nome Adão, da cidade de Campinas.
  O texto dava-lhe uns 40 annos,
  estatura regular,
  mão secca e falta dum dos dedos dos pés.
               Falla grossa e feia. 
   
  De immediato uma photographia
  se formou em minha cabeça:
  por onde andou Adão?           Que rumos tomou,
  quebrando a unha-de-gato
  com as pernas fracas pela lida paquidhermica?
  
Onde saciou a fome elephantica? 
  Em que capoeira deitou o corpo,
  que sonho, que esperança, que temor, 
  serviram-lhe de abrigo?
   
  
Terá acordado, sobressaltado,
  immaginando a aproximação dalgum capitão-do-mato? 
  Terá buscado um quilombo para resistir?
  Como terá se arranjado com a mão secca,
  precária para o trato com a pólvora,
  incapaz de manejar o revólver?
  
Terá ouvido falar de Antônio Conselheiro,
  arrebanhando gente para viver livre na caatinga?
   
  Porém, não descarto a possibilidade
  delle ter sido accomettido,
  antes de encontrar refúgio,
  pelo rheumatismo ou pela melancholia –
  ou por outra affecção mysteriosa
  que resolveu se exhibir em hora inngratta:
  um emphysema, uma asthma, ou uma syphilis. 
   
  
Aas vezes gosto de pensar que Adão 
  saiu aa cata de ouvintes aptos
  e numa noite clandestina elevou a falla grossa e feia
  para discursar sobre coisas sublimes
  a respeito da Liberdade e da África – 
  sua voz se transformando numa música só refrão:
  blues ancestral iluminando a taberna 
  com um rythmo maccio, mystico.  
   
  
Gosto de imaginá-lo, tão negro, a voz gutural,
  elaborando a sublevação, premeditando o confronto:
  uma bella barba áspera crescendo em seu rosto, 
  contornando a bocca isenta de carícias. 
  
Que imagens terá evocado? Terá sido um discurso breve,
  dolorido? Ou um apello contundente,
  chamando a attenção
              para além dos pigmentos da epidherme?  
   
  
Mas me ocorre que Adão talvez tenha morrido de sede,
  perdido na esclerose da geographia sertaneja. 
  Ou que a guerra bacteriológica,
  hoje produto atual da moderníssima indústria do fratricídio,
  tenha dissipado a sua vida.  
   
  
Sim,
  o que poderia saber Adão,
  negro que fugio dalguma senzala em Campinas,
  sobre escravos tomados de peste
              que tinham a fuga facilitada
  para que encontrassem o foco da resistência
  e disseminassem por ali a desgraça que traziam na tosse,
  nas chagas, nas roupas?
   
  
O que poderia saber Adão, procurado,
  sumariamente caçado
  (ainda que tudo indicasse sua inutilidade à lavoura, 
    ao roçado), 
  sobre um milhão de negros
  enviados à guerra do Paraguay para morrer?
   
  
O que poderia
  ele saber sobre a machina de moer carne humana
  que havia sido implantada no sul do continente,
  e que estava sendo de extrema utilidade ao Império?
   
  
Talvez pudesse contar,
  não esqueçamos de sua voz feia,
  barbaridades da Casa Grande:
  sinhás mutilando mucamas por ciúmes
  – naquela época corriam boatos
  _______de sinistros ensopados de seios,
  _______de guisados com clitóris servidos aos senhores;
   
  ou talvez pudesse descrever 
  algo de horrível sobre o assovio do chicote
                           e o canto pavoroso do açoite.
   
  
Talvez Adão pudesse falar de grilhões, 
  ou de como a igreja acreditava que eles
  não eram dotados de alma
  e por isso passivos de escravidão!          Ou quem sabe
  ele soubesse algo acerca das 3. 900 orelhas 
  que Bartolomeu Bueno do Prado
  apresentou como prova de seu êxito
  na campanha contra os creoulos!
   
  
Terá sobrevivido,
  me perguntei em um dia desses,
  até o anno de 1888,
  quando a lei áurea fôra assinada,
  propiciando um novo caminho
  para a manutenção da velha elite no poder?
   
  
[Engraçado como] não sei nada além de que se procurava,
  no anno de nosso senhor de 1875,
  por um pobre dum negro que se chamava Adão,
  com uma mão secca, sem um dos dedos dos pés,
  dono duma voz feia e grossa,
  que se meteu pelo interior do país
  e se transformou em multidão!
   
*
 
4 comentários:
Grande Nolli! Mas isso é espetacular! =D
Curti demais!
1[]!
Comentei no blog.
(...) Sua poética é perfeita.
Meu Castro Alves moderno,
Emocionante seu poema, tão sábio na exploração da grafia da época: transporta-nos para o passado, mas, em um movimento paradoxalmente poético, atualiza o tema e a indignação. Tão vibrante quanto o outro poeta, usa engenhosamente as informações históricas, rascantemente embutidas na palavra literária.
Eliane F.C.Lima (http://poemavida.blogspot.com)
magnífico!
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