segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Manhã de vento e frio em Copacabana






















Domingo de maio, azul e ventoso, mar agitado, em Copacabana. Manhãzinha, caminhava pela calçada, quase vazia. Sozinha. Pensando nas coisas da vida. Na vida como ela é. Na falta de Nélson Rodrigues, em silêncio, sentei ao lado de Drummond. De costas para a avenida, de frente para o imenso mar.
O mar sempre me fascina e apazigua, sem sentir, disse em voz alta. Ainda mais agora, com tantos amigos que vez em quando, do outro lado, à beira-dele se sentam e, com carinho, me buscam, me olham.
De onde você é? me perguntou, sorrindo, o poeta. E eu, me perguntei qual foi a última vez que vi uma estátua sorrir. Talvez tenha sido Adriano, ou Atena, não em Roma nem na Grécia, mas no Louvre, em Paris.
Do Recife, respondi.
— Poetisa, decerto. Ou prefere que eu diga poeta, como agora se usa dizer?
— Prefiro poetisa, sem ofender a língua, embora a palavra poeta soe muito mais bonita. Mas, a bem da verdade, sou médica.
Ele riu. E eu me aconcheguei um pouco mais, no casaco azul, de linha fina que mal me protege do frio.
— E os seus poemas, quem os escreve? A médica?
Touché, pensei, sem querer dar o braço a torcer.
— Com certeza. Pois que a médica e a poetisa não são uma única pessoa?
Touché, ele respondeu, como se me lesse o pensamento.
E ficamos os dois em silêncio. Ele olhando para a avenida e eu com os olhos molhados de tanto mar.
Que diabos estava fazendo ali, sozinha, num domingo de manhã, conversando com uma estátua? Tudo bem que era a estátua de um poeta, mas ainda assim, uma estátua. Será que a solidão se me chegara a tal ponto? E o vento soprou mais frio.
— Posso lhe perguntar uma coisa? A voz do poeta me roubou aos pensamentos.
— Certamente. O que quiser.
— Tem algum poema meu que toque fundo o seu coração, que esteja entre os seus preferidos?
Pronto! Era só o que me faltava! Por que tinha que parar e me sentar ao lado dele? Não podia ter seguido meu caminho, com um simples Bom dia, Drummond, ou ainda sem nada falar? Mas não, tinha que sentar, procurando sarna para me coçar. Tinha encontrado. E agora, que diria? Nunca fui muito fã da sua poesia, poucos poemas seus me comovem e não lembro de nenhum? Mas, se serve de consolo, é-me exatamente assim a poesia de Pessoa? Nem morta!
Ele me olhava, com um esboço de sorriso no olhar, por trás dos óculos, como se me adivinhasse o pensamento.
— Não lembra nenhum? Ou não gosta de nenhum?
Ele riu e eu pensei que detesto estátuas falantes.
— Não é que não goste, é que, sinceramente, conheço pouco a sua poesia. E assim, de supetão, só consigo lembrar dos mais comuns, de José e o da pedra, que não são meus preferidos e dos quais você já deve estar um pouco saturado.
Ele riu alto, como nunca pensei que riria. Aliás, nunca pensei que ele risse. Nem em vida.
— Boa saída pela tangente. Além de poetisa e médica, vai ver, você é geminiana.
Foi minha vez de rir. Alto e bom som.
— Sou, sim. Então...
— Então?
— Então, melhor deixar de bobagem e falar claro.
— Muito melhor, com certeza.
— É que realmente conheço pouco a sua poesia. Conheço muito melhor a do seu amigo Emílio Moura. Ela me fala mais perto, como se me lesse. Ao contrário da sua, que, desculpe a franqueza, quase sempre pouco me diz.
Ele me olhou com carinho, pôs a mão sobre a minha e disse:
— Não há o que desculpar. Eu sempre disse que Emílio era o maior poeta das Geraes. E a Poesia é assim, tem muitas vozes. Uma para cada poeta. Uma para cada leitor. E como dizia o Nélson, em quem você pensava quando aqui sentou, toda unanimidade é burra, não acha?
Que alívio!, pensei, rindo. E lembrei de uma conversa entre poetas bem vivos, que tivera uns dias antes. Onde se falara sobre a grandeza da Poesia. Sobre o seu ir além de picuinhas, além dos rótulos. Sobre o seu abrigar tantas formas e fórmulas, díspares, diversas entre si. Sem julgamento. Sem discriminação. Sobre ser o fazer poético fado e sina. Modo e necessidade de sobrevivência, como o respirar.
— Melhor você ir andando. Começa a chuviscar.
De novo, a sua voz me roubou aos pensamentos.
— Estátua não se importa com chuva, frio e vento, mas poetisa nordestina e viva pode adoecer, se resfriar. Mesmo sendo médica.
Ele tinha razão. A chuva engrossava. Beijei a sua mão e me levantei.
— Obrigada, Poeta. Tornou minha manhã menos só e mais feliz.
— Eu que agradeço. Há muito não conversava assim. Posso fazer um pedido?
— Mas é claro! O que quiser.
— Quando voltar para casa, numa noite qualquer, leia aquele meu livro branco, que seu amigo Oswaldo recomendou, você comprou e nunca o leu.
Nem sei se fiquei vermelha, ou se bege, empalideci, naquele frio. Sei que por dentro, sorri. Touché, again, pensei.
— Leio sim. Prometo. E quem sabe, venho aqui para conversamos sobre ele. Numa manhã de sol. Menos fria.



Márcia Maia

Um comentário:

L. Rafael Nolli disse...

Márcia, maravilha de texto! Diálogo entre poetas, diante do mar, só podia sair coisa boa! Sabe, tenho o Drummond como um dos meus poetas preferidos, cheguei a ir até Itabira, e lá pude dialogar com a Estátua do mestre! Muito bacana o texto, Márcia! Abraços!