I
acordou no chão frio
com a boca amarga
e com a roupa suja
de vômito seco
pensou em quanto tempo
estava ali
mas deitou novamente
não importava
era só mais um dia
como qualquer outro
II
fumou o cigarro
sentado na privada
um vestígio de prazer
num dia difícil
para não desconfiarem
deu uma descarga
que levou junto
a bituca
e seus sonhos
de criança
III
aurora
juntou as latas de refrigerante
caixas de doces
garrafas de suco
embalagens de salgadinhos
amontoou no carrinho
e então fez sua primeira
e única
refeição do dia
crepúsculo
IV
penteou os cabelos
passou batom
rosa
sua cor preferida
colocou o vestido
rosa
seu preferido
e foi trocar sua infância
por dinheiro
na esquina mais próxima
V
passou o dia
na fila
gemendo
chorando
implorando uma chance
à aquela que
agora
dormia
no túmulo
de sua barriga
VI
noite de chuva
encontrou um canto seco
para deitar
se cobriu com o jornal
molhado
que estampava a notícia
da morte do amigo
queimado
os olhos abertos
também choviam
VII
atento
olhava a mãe e a criança
o modo como sorriam
o carinho que lhe era estranho
ausente
num ato de coragem
se aproximou
e levou a bolsa
para matar a fome
que lhe acariciava as entranhas
VIII
dividia o que tinha
com os amigos
naquela
noite
era uma lata
queimando crack
uma ponta de baseado
e um pouco de
tristeza
e abandono
IX
no semáforo
passava pelos carros
pedindo ajuda
por ser surdo-mudo
os motoristas
em solidariedade
se faziam
de cegos
protegidos pelos vidros fechados
e pelos óculos de sol
X
na calçada
as mãos
como pétalas
se abriam para pedir a esmola
os pés
cheios de feridas
espinhavam o olhar alheio
lhe garantiam a subsistência
e não saravam
graças a Deus
Isaac Ruy
2 comentários:
Vestígios de uma semi-vida...Eu amei!!!
Uau, que épico. Muito bem conduzido, gostei bastante.
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