sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Imitação de Ícaro




Fazia horas que estava deitado na cama observando o planetário projetado no teto. O quarto estava repleto de velharias, minhas companheiras, desde que Sofia me deixara. De quando em vez abria um livro para manter aquele velho hábito. Já não tinha gosto em leituras, amofinava facilmente com aquela literatura safada. Não suportava os títulos que recebera da namorada, livros esdrúxulos, sem composição, nem conteúdo. Haveria quem os defendesse veementemente, mas, não eu; não fazia caso daqueles livros, preferia ler Baudelaire, mergulhar nos infernos de Rimbaud, me perder nos processos metamórficos de Kafka. Sim. Aquilo era literatura e não esses títulos que mais parecem receituário. Literatura safada. Autores medíocres que querem apenas a fatia do bolo, povinho sem-vergonha. Não dava para ser assim. Decidi escrever. Optei pela loucura deixando ser tomado por uma obsessão doentia. Entrei para o quarto como quem entra para um casulo. Haveria de sair dali escritor, mas por onde começar? Enchi o quarto de livros raros que encontrava em sebos. Recolhia todo jornal literário, inscrevia-me em todos os suplementos. O espaço ficava cada vez menor ante o amontoado de papéis. Os livros empilhavam-se aos montes, pouco lia até que, definitivamente, perdi a razão. Seis meses. Havia seis meses que entrara para o quarto. Vivia debruçado sobre os livros e jornais que se espalhavam vertiginosamente. Dormia em uma poltrona, cochilos curtos, o suficiente para me recompor. Ficava alheio ao que se passava fora daquelas paredes. Saía do quarto apenas para atender a porta, raras vezes, para receber a pizza, o lanche ou os correios. A vizinhança estranhara meu comportamento, mas que importava? Era apenas mais um. Todo dia nascia gente, morria gente. “O homem não se barbeia, nem cabelo penteia. Ensandeceu de vez” - pensavam. Andava pelo quarto metido em um samba-canção, meias de algodão nos pés, ora um livro de poemas nas mãos, ora um romance. Estava me alimentando abundantemente. Meu desejo mais secreto me impulsionava.

Acordei certo dia com a sensação de poder confiscar os mundos, reter nas mãos todos os pequenos universos alheios, tornando-os matéria de primeira essência. Precisava romper o casulo que se formara entorno de mim, voar, sair às ruas tentando capturar os olhares, as dores, os medos, a violência dos homens. Em meu íntimo armava-se um circo, erguia-se uma tenda, formava-se uma imensa aldeia e, todas as civilizações habitavam-no. Gregos, romanos, vikings, maias, incas, astecas, normandos, egípcios, persas, aimorés, tupinambás, botocudos, o mundo inteiro se digladiava em mim. Caminhei por um tempo estranho à minha capacidade de compreensão das coisas e, me vi perdido em um imenso labirinto de imagens contorcidas da realidade. Não havia em mim nem uma faina de prosseguir. Retroceder era impossível, pois não havia caminho de volta, nem o fio de Ariadne a me conduzir. Segui às cegas em meio à multidão insana, desfraldei a espada e corri em direção ao sol. Senti um impulso, me joguei da ponte, voei. Voei alto. Braço erguido, espada em punho, pretendia apagar de vez aquele que usurpara da terra a condição de centro do universo. Decidido estava a destruí-lo, mas num golpe de mestre, fizera com que as asas que meu pai esculpira derretessem, e lançara-me no abismo. A morte não veio sobre mim, apenas destilou o veneno, inspirando-me todo tipo de desejos de vingança, um ódio expansivo inflamava-se no peito – gases que se misturam numa iminente explosão.

(...)

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