quarta-feira, 24 de março de 2010

Considerações a respeito de um homem nu, em 1926

Há alguns anos minha avó veio morar conosco. Costume antigo, sempre está contando algumas histórias, que traz fresca na memória. Todas repletas de matéria-prima para crônicas nostálgicas ou papos descontraídos em mesa de bar.

Vivendo em fazendas, ou em pequenas cidades do interior de Minas, fala de como sua avó fora laçada numa tribo de índios – não recorda o nome da tribo ou o estado onde ocorreu o fato; fala de como certa vez fora levada com suas irmãs para a cidade para verem o espetáculo do acender dos postes. A tecnologia, então, consistia numa lamparina movida a querosene e o protagonista da cena um homem qualquer, que vinha acendendo lâmpada por lâmpada, iluminando o caminho.

Recorrente em seus assuntos é uma porção de revoluções que ela presenciou. De repente chegavam homens, ninguém sabe de onde, nem servindo a que propósito, e levavam os jovens para lutas em outros cantos. Ela nunca mencionou se esses voltavam esfarrapados, mutilados ou se não voltavam nunca. Tampouco isso vem ao caso.

Era menina, e a década provável os anos 30/40. Penso sempre que batalhas poderiam ser essas, travadas nesses confins do mundo, onde a vida era completamente diferente da contada nos livros de história e nos almanaques de farmácia. Por aqui a bastilha ainda não havia caído, a Rússia sequer existia, e Napoleão, que tinha banhado o mundo com sangue, poderia tanto ser uma lenda mitológica como um santo católico.

Quase sempre concluo que se trate de disputa de fazendeiros – coronéis donos do mundo – lutando pela expansão de suas propriedades, ou promovendo um rotineiro massacre nos latifúndios vizinhos. Uma dessas aventuras, é certo, se trata da segunda Guerra Mundial. Essa, devidamente documentada, passou em sua Macondo recolhendo as motos e os veículos que supostamente seriam enviados para a Europa. Meu avô tivera a sua motocicleta confiscada. Se ela fora para a Europa servir de cavalo motorizado para as tropas aliadas ou se ficou nas mãos de algum burocrata, passeando nas ruas da capital, não é possível saber.

Porém, nenhuma dessas histórias me tocou mais que a saga de Mané Pelado. Num momento em que a ordem do dia consistia em buscar lenha nos campos repletos de cascavéis e cuidar das criações, alvo constante dos predadores naturais e das intempéries da natureza, a paz estabelecida era quebrada pela figura esguia, completamente nua, que ficava rodeando as casas e ao primeiro sinal se lançava às matas e sumia.

Por um descuido, pode parecer que estamos falando de uma assombração, que naquela época realmente existia aos montes. As histórias de lobisomem, de extraterrestres, são um caso a parte. Mané existia mesmo e tudo indica que era um louco, fugitivo de algum lugar, ou, em outra hipótese, um abandonado pela família que sobrevivera comendo raízes, roubando ranchos, capturando pequenos animais.

Mas quem era esse ser que costumava invadir as casas quando todos saíam para a colheita, ou à pesca, para beber o leite recém ordenhado? Quem seria esse homem que aproveitava os descuidos para invadir as residências, comer o pão, beber a pinga, tirar um cochilo em cama quente? Seria uma vítima dessas revoluções, com a sanidade ferida em combate diante da visão do holocausto? Seria um pensador, que um pouco atrasado, mas sozinho e com os recursos que possuía, percebera que a vida que se levava nas cidades era um câncer e o mundo caminhava para o abismo?

Conta a minha vó que, certa vez, sua mãe ao notá-lo se esgueirando nas imediações da casa atirara nele com a carabina. Ele saindo em fuga, para voltar no outro dia, é uma imagem que me impressiona muito.

O que foi feito dele, ninguém sabe. Por certo, onde caiu morto ficou até que a natureza encarregasse de consumi-lo. Encontrado por caçadores, talvez tenha sido enterrado na beira de algum riacho, num túmulo coberto de pedras que o musgo engoliu. Em última instância, pode-se crer que tenha recobrado a lucidez e retornado para casa, onde filhos e mulher já haviam se esquecido do luto.

No mais é isso, ficando cada um com o fim que mais lhe apetecer.


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2 comentários:

Isaias de Faria disse...

rafael, massa o texto. abraço, do amigo isaias

Márcia Maia disse...

E eu quase nunca leio vc em prosa. Vou linkar e vir todo dia 24 aqui tb.
Beijo.