Quando  os gatos  se acabam debaixo  da roda  dos carros ,
  ou  se matam na boca  de cães  domésticos 
  – !equilibristas insanos  de muros  de quintais ! –
  eu  me  nego  a dormir  em  paz .
  Não  por  amá-los,
  pois  desde  sempre  os odiei
  com  seus  roucos  miados  boêmios :
  insuportável  ruído  noturno  perante  o canto  dos grilos 
        e dos galos ,
  diante  do pio  das corujas 
              e o alarme  dos carros  arrombados.
  Não  por  compadecer  de sua  extinção . 
  Lamento , antes , o som  de grandes  vira-latas 
  feito  saco  de ossos  e merda espalhados no asfalto 
  (quando  se pode somar  à suas  tripas  e pêlos 
  uma boa dose  de urina  ou  ódio  
                                e nada  alterar  em  sua  desgraça ).
  Quando  os gatos  aniquilam-se
  em  pedaços  de carne  envenenada,
  jogadas  por  sobre  o muro  ou  deixadas na sarjeta ,
  eu  me  sinto diferente  de quando 
  as últimas aves  se desfazem nos  pára-brisas  dos ônibus ,
  ou  de quando  o gado  confinado
  se esquece de sua  natureza 
  e pensa  a si  mesmo  como  mais  um  dos postes  da cerca .
  Não  por  prezar-me da sina  dos gatos ,
  pois  antes  de tudo  amaldiçôo-os categoricamente –
  esquecido do bom  senso , dos modos  ou  da etiqueta .
  Não  por  indignar-me de restar  a eles,
  e a sua  classe, a corda-bamba dos muros :
  por  ideologia  sempre  acreditei ser  o mundo  dos homens 
  e de seus  fantasmas ,
  dividido em  partes  iguais  aos primeiros  citados.
  Quando  os gatos  são  substituídos por  seres  genéricos ,
  animais  exóticos  ou  bichinhos de pelúcia ,
  que  não  trazem mentira , asma  ou  alergia  ao lar ,
  eu  me  nego  a dormir  em  paz .
  Não  por  estar  a par  dos últimos  avanços  da medicina ,
  das técnicas  homeopáticas, dos tratamentos  alternativos ,
  das UTIs e do xamanismo em  última  instância ,
  mas  por  saber  o restante intratável .  
  Na noite  em  que  os gatos  são  subjugados pelas ratazanas 
  e seus  corpos  devorados em  belos  ensopados ,
  ou  servidos em  noites  de gala  em  espetinhos  de bambu ,
  nas noites  em  que  crianças  amarram bombinhas em  seus  rabos ,
  ou  os lança  aos fios  de alta  tensão  para  ver  os fogos ,
  eu  me  nego  a dormir  em  paz ...
  Porém , eu  durmo.
* do livro Comerciais de Metralhadora
2 comentários:
De profunda dor... No peito.
(Você é certeiro!)
Dormimos todos, alguns menos, alguns mais.
Muito bom amigo!
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