segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O sangue nos jornais *

por J. Rodolfo Lima

. As fileiras de barracos são separadas por vielas muito estreitas . Num canto há um volume coberto com papéis presos por pedras e um sapato. Algumas pessoas começam uma aglomeração que a polícia, em vão, tenta dispersar.

corpo sem nome
o jornal de ontem
cobre a notícia de amanhã

. O vento frio da manhã agita as pontas do papel. Na viatura um soldado ouve mais ou menos atentamente enquanto no rádio, entre soluços e chiados, soam as mensagens da corporação. O outro soldado, em pé ao lado da viatura, parece uma estátua. O tempo parou por um momento: nada se move, nada se ouve. O vento traz de volta o movimento e os sons.

aurora cinzenta
o vento traz
um novo dia

. O cordão de isolamento recém instalado já é pouco para manter as pessoas à distância. Tem-se a impressão de que todos que passam, param por um instante. Dos que ficam, a maioria são mulheres. Algumas trazem bebês no colo, algumas vêm cercadas de crianças de vários tamanhos. Qualquer rajada de vento aumenta a expectativa de que o papel voe e algo se possa ver do que está embaixo.

na manhã fria
a caminho do serviço
a breve atração

. De um lado, o jornal se tinge de sangue, que escorre vários metros viela abaixo. E segue descendo, escuro, viscoso, fazendo desenhos incompreensíveis no chão. Agora já há um círculo bem definido de pessoas ao redor. Por onde o sangue escorre, dá-se passagem. Crianças andam e brincam por toda parte. Algumas, é inevitável, sujam os pés na lama, mistura de sangue com o barro do chão. Também, ninguém nota ou parece estranhar.

represa rompida
não é para o mar
que este rio corre

. Chegando a perícia, a expectativa cresce. A polícia pede à multidão que se afaste. Um soldado pede às pessoas que levem suas crianças para casa. O círculo recua talvez um metro e pára. Aos poucos vai voltando à posição original, como se houvesse uma pressão, uma mola, que o puxasse. Alguns curiosos mais ousados se aproximam e voltam, numa onda muito lenta de movimento.

nada mais a fazer
senão se distrair
com a tragédia alheia

“... sabe quando a gente joga uma pedra na água e aparecem aquelas ondas, aqueles círculos correndo pra fora?
É como se fosse o contrário: aos poucos, o círculo se fecha...”

será este o assunto
nas mesas, nos bares?
“meninos, eu vi”

. Os policiais afastam um pouco a multidão, a cada vez que a roda se fecha. O corpo é descoberto: está numa posição estranha, não parece natural. Era jovem, tinha o cabelo muito curto, bermudas, camiseta, chinelos “de dedo”. O rosto está apoiado no chão, o boné ao lado. Foram vários tiros, três na cabeça. Alguns dos presentes o conhecem: “morava logo ali embaixo”, mas ninguém ouviu nada.

para sobreviver
é preciso aprender
a não saber nada

. O corpo é despido, virado, examinado, recolhido. A multidão fascinada assiste a tudo. O rabecão leva o cadáver. A multidão se dispersa. A perícia e os policiais militares também se vão. Sobram, no chão, alguns papéis sobre a mancha de sangue. O dia, enfim, começou. A mancha, agora coagulada, ficará até a próxima chuva.

o sangue nos jornais
não é só
em preto e branco


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*publicado originalmente em http://ecosdiversos.blogspot.com

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