quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

(...) Ficções esparsas e inacabadas


Condenado que fui à vigília, não temo a visita do ladrão, pois não haveria de vir enquanto não me ausento. Por isso, mantenho os olhos bem abertos e, fixo-os na fumaça que se expande. Vivo acocorado, prestando reverências às sombras. Minha vigília se faz sob um fiapo de luz, pois a incandescência me cega e a escuridão me assusta. É insuportável a ausência, porém, prefiro ocultar-me. Há muito tempo não tenho nome. Resumo-me a números. Talvez seja um desmemoriado que se perdeu obtuso. Talvez seja apenas a transfiguração de um ser desfigurado: obra inacabada que se viu ruir. Minhas mãos, porém, se alongam. Volteiam meu corpo num abraço mecânico. Em minha cabeça ecoam os sons das sirenas, alarmes, ruídos, batidas, estalos, estampidos. Tudo ecoa desordenadamente ferindo os tímpanos e a alma. O calor me toma o corpo. Castigo que escolhi voluntariamente em meu masoquismo. Todos os meus membros são o prolongamento da máquina. Eu, indecifrável robô, tenho sonhos mórbidos. Um olhar confrangente sobre os outros que, em fila indiana, esperam o seu prato mofado para, como eu, amofinar-se no constrangedor fazer diário.

Minha obrigação é vigiar. Vigio a luz para que não se apague; a porta para que não se feche; o ventilador para que não gire demasiadamente. Vigio o pó suspenso, a poeira, a fuligem. Vigio o bem para que não se sobreponha ao mal e o mau para que não destrua o bom. Vigio as frutas podres: Adão e Eva no jardim perdido.

Sou o olho que olha, o ouvido que ouve, a boca que fala, o coração que palpita. Sou tudo e nada. Um ser sem nome, sem identidade. Sou o vigilante: aquele que não dorme, nem repousa. Designam-me por um número de uma imensa cadeia. 1263. Sou eu. Agente 1263 do setor norte. Treinado e qualificado para vigiar – olho do olho do olho. Todos são números. Agentes qualificados, treinados para diversos fins. Abrem, fecham. Acendem, apagam. Enroscam, desenroscam. Tudo simultaneamente e sincronizado, numa mecânica inigualável. Todos sinergicamente unidos, embora afastados. Não se tocam, não se sentem. Não tem afeto ou afeição: são números, e, números não sentem, nem se reconhecem, pois números apenas se somam, se multiplicam, se dividem, se subtraem.

Não procuro me redimir de meus males. Foram causados a mim mesmo. Fiz do labor a condenação, prosseguindo em vigília. Não finquei os joelhos ao chão por não haver altar ante meus olhos. Não, não consigo enxergar magnitude na filha de Tântalo. Ela se gloria de sua abundância; como se bastasse a si mesma. Ela e sua descendência. Ela e seu cabedal do medo e arrogância. Engoliram-me, regurgitaram-me e, sobre mim vomitaram seu asco. Tu não és deusa, filha de Tântalo! Como curvar-me a ti, se nem a Apolo ou Juno, Zeus ou Hera, Minerva ou Latona, presto reverência? Logo tu, mortal, queres que me prostre? Não. Vai-te como veio desconhecida forma. Vai e deixa-me com meus destroços, submerso em meus escombros.(...)

21 comentários:

Cesar Veneziani disse...

Não ando com muita paciência pra ler prosa ultimamente, mas este texto foi impossível de parar de ler! Uma fluência que exige a leitura! Parabéns!

Cristiano Prata disse...

Você escreve lindas palavras!!Adorei!

Cássio Amaral disse...

Proemência prós parto pacto
parâmetro no uivo de Hermann Hesse
a estepe nos engole.

Rodrigo Poeta disse...

Muito bom o texto nobre amigo! Mande ele para mim...para o meu e-mail...poesiarte@hotmail.com ...Abraços fraternos. Rodrigo Poeta.

Depois dá uma passada no blog: www.poesiarte.blogspot.com

Anjos do Senhor disse...

Como sempre de fragmentaria inigualavel, de louca e deliciosa leitura.
tamo ae valew

Angela disse...

Uma lindo e "louco" texto. me prendeu do começo ao fim...beijos

Babaia.

Unknown disse...

Parabéns. Belas e profundas palavras!
Abraços, Naiara...

Bala de Prata disse...

Belíssimas palavras que fluem como uma saraivada nervosa!
Grande abraço, Poeta!

Unknown disse...

Grande poeta ,

Triunfante e envolvente a forma com que dá vida e vigor as causas solenes do pensamento .. grande abraço amigo . o texto ficou showww !!

Unknown disse...

Maravilhoso texto flávio!
Amei!..beijosss

Valquíria Calado disse...

CARO AMIGO; PROFUNDO EXTRAIDO DUM SENTIMENTO INCONFORMADO, DE UMA SOCIEDADE EM QUE SERES VIRAM NÚMEROS; E A FELICIDADE ESTÁ DISTANTE DE SER ALMEJADA POR HOMENS QUE VIVEM COMO MAQUINAS PRODUTIVAS ,NUMA SOCIEDADE CAPITALISTA.UM ABRAÇO.

Unknown disse...

Flávio seu texto ficou muito bom, parabéns... De sua amiga Daiane Ferreira

Unknown disse...

Parabens cara,ficou muito bom,
continue escrevendo belas palavras como estas.
Abra;os caro amigo!!

Lecy Sousa disse...

Taí, Flávio. Gosto dessa literatura do recôndito subjetivo que dementa a realidade. Pra mim essa é a essência da literatura. Ao redor estão todos os fractais.Ótimo exercício.

Larissa Marques - LM@rq disse...

MUITO BOM, COMO NÃO GOSTAR?

flaviooffer disse...

valeu pessoal pelas visitas e comentários! Todos são sempre bem vindos! Abraços!

Glauber Vieira disse...

Interessante texto, bem escrito e instigante. Será que aconteceria em um futuro próximo?...

Daniela Figueiredo disse...

A vigília, o controle, para quem e para quê? Muitas vezes nos autocensuramos, nos podamos, na ideia do politicamente correto, mas para provar o quê? Deixamos de viver, nos tornamos números, vigilantes de emoções. É proibido sentir, para não abalar a perfeição. Sentir ultrapassa barreiras e derruba conceitos.
Lindo texto, Flávio!
Beijos e um feliz 2010!

Unknown disse...

Muito lindo,Vc está de parabens.

Marcia PoeTree disse...

Liberdade ainda que tarde, caro amigo! Dá uma banana pra essa babilônia, atrapalhe a corrida dos ratos e poesia neles!!!
Continua mandando ver! Abraço!

Joakim Antonio disse...

Olá amigo, sempre me surpreendo com a quantidade de coisas boas que saem de Minas.

Simplesmente um espetáculo, e como não poderia faltar, no fim do espetáculo: Aplausos!


P.s.: Espero que saiba, estamos vigiando seus textos...

Agente 1911