domingo, 23 de maio de 2010

Frio

Para ler ouvindo:







Sinto muito frio. Não importa o quanto eu pense em coisas quentes. É apenas frio. Pés, congelados. Pernas, imóveis. O corpo todo arrepiado. Muito frio. E se eu saísse desse lugar? Como não pensei nisso antes? Um passo. Ainda frio. Tantos outros passos, outra direção. O mesmo frio. E eu que não gostava do inverno! A vida é muito irônica. Um frio cortante tirando minhas forças. Meus lábios adormecidos. Não sinto minhas mãos. Consigo mover apenas os olhos. Tento em vão proferir uma palavra. Gelo. Muito gelo. Se eu respirar profundamente, sinto congelar os pulmões também. Todos os órgãos envoltos por uma teia fria. O pior frio de todos. Longe, muito longe, em meio à neblina gelada, há uma janela. Tenho certeza que a vi. Ou seria miragem. Como num deserto sem água. Miragem. Eu sei que havia um povoado aqui. Exatamente onde estou agora. Mas não vejo as casas. Não há pessoas. Não há calor. Nada mais pode tomar o lugar de tanto frio. Se tivesse neve, tudo bem. Mas é apenas frio. Vento enregelante. O ar está congelando, se solidificando. Quando acabar, não sei. Por que ainda penso nisso? Acabado o ar, finda a vida. Ou seria uma mutação do nosso habitat como o conhecemos? Loucura. Nunca ouvi dizer que o frio levasse à ela. Só pode ser delírio. E isso me lembra que também pode ser um sonho. Terrível. Um pesadelo. Daqueles que parecem reais. Tento beliscar meu braço, envolvido por uma névoa gelada, estranha. As pontas de meus dedos congelados não tem força. Não é como minha mãe dizia. Beliscar não resolve. Ainda durmo. Talvez não tenha sido o suficiente. Um frio surreal. Ordeno que meus pés se movam, um de cada vez, para tentar mais alguns passos. Sei que há uma janela aqui em algum lugar. Frio. Gelo. Privação dos sentidos. Ausência de calor. Meu sangue também vai congelar, eu sei. O arrepio dói. O vento corta a pele sensibilizada. Mais arrepios. Mais dor. As orelhas vão se quebrar, como vidro. Cada movimento tem que ser muito calculado. Dói. Congela. Mais alguns passos e avisto uma sombra enorme. Deve ser a casa que eu tinha visto. Tem que ser. Mais pessoas estariam congelando? Vou gritar, chamar por alguém. A voz não sai. Tento inutilmente pensar mais uma vez em fogo. Penso no sol. Penso que estou sendo queimada viva. Pensar não resolve, e congelo mais. Imaginar que estou mais agasalhada, inútil. Perco tempo e gasto as últimas energias idealizando uma cama quente, um bom cobertor. O colo de minha mãe. Mais um passo. A inércia me assusta. Se ainda consigo diferenciar emoções e sentidos, ainda posso ter esperança. Não é loucura. Mas o frio só aumenta. A dor é lancinante. As lágrimas congelam antes mesmo de cair. Gelo. Quantas vezes pensei no fim... mas nunca era assim. Desejo que seja rápido, e que eu não me lembre de nada depois. Agora sim, vejo a janela. É mesmo uma casa. Penso ter ouvido um suspiro. Deve ter sido o vento. Mais alguns passos e uma poça d’àgua. Piso sem querer e meus pés sentem ainda mais frio, congelam. Não vou resistir. E se eu encontrar alguém congelado? Devo seguir em frente. Mais passos, cada vez mais pesados. Pedras. Gelo. Frio. Se eu soubesse que isso iria acontecer. Agora não há saída. Só aquela janela. Parece haver luz. Não, mais uma miragem. Engraçado, se eu puder um dia contar isso a alguém. Mais um pouco, e eu alcanço. Salvação. Frio. Há neblina gelada por todos os lados. E mais nada. Tento alcançar a parede da casa. Nada. Ninguém. Foi minha imaginação. A loucura gelada do fim de uma vida. Quero me aquecer. E mais nada. Calafrios. Agora está ficando mais nítido. Posso ver a janela e todas as suas formas. Mas para chegar a ela, há frio. Muito frio. Cada passo parece um caminhar sobre micro cacos de vidro. Passos cortantes. Movimentos involuntários. Espasmos. Calafrios. Ouço vindo de longe a voz de Chico dizendo baixinho: “oh pedaço de mim, oh metade amputada de mim...” E é isso mesmo, o frio amputou partes de meu corpo, mas deixou a mente lúcida para assistir ao fim. A janela escura. Cacos de vidro pelo chão gelado. Cacos de frio. Um vulto pela fresta da janela. Um olhar. E ele continua cantando: “... leva teu olhar, que a saudade é o pior tormento, é pior do que o esquecimento, é pior do que se entrevar...” Palavras profundas, frio imenso. Arrepios sem fim. Calafrios. Sempre achei que a saudade era meu pior tormento. Mas o frio me domina. Entreva. Paralisa. Os olhos estão na janela, observam meu dilema. Tanto frio. Minha última esperança era aquela janela. Apagou a luz. Fechou. Mais frio. Mais dor. Esse frio também dói como uma fisgada num membro amputado. Meus membros foram amputados definitivamente. E congelados pelo frio. Torpor. Numa quase demência, mais um passo. E meu corpo se atira na janela trancada. Não há mais nada. Deixo o gelo me abraçar. Só consigo murmurar um adeus, quase ridículo, para o nada. Para o frio que me leva. Adeus.

2 comentários:

Paco Steinberg disse...

Joana.....eu me surpreendi.

Misturar as artes (prosa e música), além de Aristotélico, é de muito bom gosto.

Lindo texto, e incrível porque, quando cheguei na palavra Terrível, a música mudou de ritmo.

Quase um Mágico de OZ ao som de Pink Floyd. =)

Parabéns.

Gisele Cristina Voss disse...

esperava descobrir, junto a história, a solução para meus joelhos eternamente gelados...

mas vou tentar abraçar o fogo ao invés do gelo me abraçar ;)

belos texto!