segunda-feira, 24 de maio de 2010

Legenda para filme de Sergei Eisenstein

Foto de Rafael Nolli

O poema tem que ser ácido,
não por mim,
mas por Sacco & Vanzetti –
sentados em cadeiras onde serão eletrocutados.

O poema tem que ser ferino,
não por mim,
mas pelo Líbano novamente bombardeado –
e que será bombardeado até que os telejornais
se cansem de noticiar a desgraça dessa guerra.

(Que o verso noticie as crianças confusas,
as bibliotecas cheias de poesia,
as mulheres agarradas às barbas de Maomé,
os cedros cantados pelo profeta Ezequiel –
todos excluídos das estatísticas,
pois suas mortes foram desprezadas
por não venderem jornais
e atrapalhar o comércio bélico.)

O poema tem que ver além do seu próprio umbigo,
não por mim,
que muito sei do meu umbigo,
mas por todos aqueles que amanhã
acordarão desesperados –
eu e meu umbigo entre eles.

O poema tem que ser denunciante,
não por mim,
mas por Ruanda
que na Noite dos Facões
perdeu um milhão de seus filhos
para uma fábula belga
sem príncipe encantado ou final feliz.

(Que no poema escorra o sangue dessa gente
que ainda ontem estava viva,
donas de suas mãos e
cabeças decepadas pelos vizinhos,
onde buscavam o sal
que faltava para colorir as suas mesas escassas.)

O poema tem que ser visionário,
não por mim,
que mal posso ver além das brumas do agora,
mas por todos aqueles que mesmo vendados continuam
sem dosar os passos no campo minado das cidades.

(Que o poeta saiba cantá-los
sem se esquecer dos
crimes diários que a sociedade obriga-os a cometer
[Bakunin sorri nessa estrofe!])

O poema tem que ser dos homens,
respirar o mesmo ar que eles,
chorar os mesmos mortos,
estar ombro a ombro nas filas dos hospitais
ou nas trincheiras do desemprego,

não por mim, poeta, não por mim.



_________________


Mais poemas por aí:


* Estou na Revista Biografia do amigo Daufen Bach

* Novamente na Revista Letras Et Cetera



*

4 comentários:

JPM disse...

Olá,
Tive contato com este blog no cafedeicaro.
Agora vim conhecê-lo e seguí-lo.
Desde já são convidados a visitar o meu.
Saúde e felicidade.
João Pedro Metz

João de Sousa Teixeira disse...

Que belo e lúcido poema de combate aqui tem.
Sou solidário com tudo o que diz!
Beijinho
João

Francisco de Sousa Vieira Filho disse...

O poema tem quer ser, pois que pó só lhe resta ao fim [embora de início lhe seja]... ;)

Pontos de Ligação disse...

Adorei teu blog!
Teus textos, com verdades, sentimentos... Tão cheios de vida....

Já estou te seguindo!