domingo, 10 de abril de 2011

Femeal

Ter dom dói.
Me sangro com frequência cruel para saber que ainda sou.
Há um vácuo dentro de mim,
por onde pende cada vida que gero e não pense que é só isso,
ainda tenho muito mais coisas em minhas entranhas.
Incho para suster,
derreto para amar, sou maleável como o doce no banho-maria,
e também inabalável como o jequitibá,
mas não imune às intempéries.
Se me dobro raramente em algumas tempestades
é porque o tempo me ensinou que até os seres como eu são frágeis.
Meus seios amamentam multidões
e o mel de minha boca desfaz cada intriga.
Meus cabelos abraçam as gentes e meu suor brota revelando a labuta que é diária.
Eu saio à caça e ainda beijo os filhos,
sou eu quem conto os tesouros da casa
e ainda assim não tenho tempo para usufruí-los.
Me adorno de noite,
meu perfume cheira ébano;
isso confessa aos do derredor que sou uma mistura de delicadeza de flores e turbulência de águas marítimas.
Minhas coxas são quentes
e apesar do esquecimento em esfregá-las no banho,
seu odor de mulher da terra atrai qualquer alma masculina ao relento.
Não tenho aias, não posso mantê-las.
A mesma mulher que esquenta o leite e colhe a lenha
é também a que adorna com mimos aqueles que dela dependem.
Os cabelos dos pequenos são sistematicamente afagados,
se não tem a beleza que teriam se eu só para eles vivesse,
ao menos seus coraçõezinhos me reconhecem
em meio às névoas das crises contemporâneas.
Minhas unhas não estão tão impecáveis quanto outrora,
minhas orelhas não sustém todos os brincos desejados
e meu pescoço com odores de lavanda não ostenta jóia alguma;
no entanto minha beleza cansada e meu olhar exausto, porém atrevido, ainda é o mesmo impetuoso da juventude.
Nestes tempos de guerra,
em que nossos homens saem à batalha,
eu, assim como as outras,
muitas vezes me vejo ensinando precocemente as crias
a se defenderem dos predadores,
a fim de sair na noite escura, com o lampião aceso,
à procura dos soldados que prenderam meu marido.
E também, dadas certas circunstâncias,
escolho não tê-lo se a necessidade de me dedicar a qualquer atividade produtiva seja mais atraente.
Jamais, porém, me privo do amor,
porque dele sou feita, e para ele vivo.

2 comentários:

Celso Mendes disse...

Uau! Que maravilha, Cris... li num só fôlego. Intenso, forte e essencialmente "femeal". Adorei o texto.

beijo.

Paola Vannucci disse...

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quanta maravilha vir aqui e ler tantos trabalhos dos mais diversos assuntos.....

me lembre sempre das novidades meu querido

]bveijos