domingo, 24 de abril de 2011

Retrato de um casal

1
Não tinham nada em comum.
Se se amavam era por ignorância.
Outra palavra excederia.

Sequer poderiam explicá-lo.
Se amor fosse, o que o tornava?
Cio talvez dissesse algo.

Mas não dizia, em absoluto.
Fica-se assim, acreditemos.
E damos por salvo o poema.

2
Ele. Por falta de aptidões
– feio de berço, crescido errado –
nada de melhor lhe ocorreria.

Ela. Por falta de anseios
– sentia senão cólica menstrual –
nada de melhor lhe ocorreria.

Um dia os caminhos se cruzaram
– dia qualquer, sem santo ou festa.
Nada de melhor, nada de melhor...

3
Nem tão bom haveria de ser.
O tanto que era não bastava –
havia fome e frio todo dia.

Sequer tão ruim chegaria a ser.
O tanto que era se suportava –
coisa que não chegaria a aleijar.

Nada de ambos haveria de ser.
O que quer que fosse assim o era –
um pouco de cada em doses diárias.

4
Até onde poderão ir ninguém sabe.
Manter-se vivo tem sido o bastante –
e a saúde vai sendo remediada.

Até onde poderão ir ninguém sabe.
Uma hora a voz ultrapassa o limite –
e dos socos se passa à faca.

Até onde poderão ir ninguém sabe,
um passo adiante devora a cerração –
e o poema perde a sua batalha.



Colagem de Max Ernst - da série "A Semana da Bondade"

2 comentários:

rui teresa disse...

extraordinário. que ritmo fabuloso e altamente tenso, criador de ansiedades para um desfecho bem observado

:-)

Graça Carpes disse...

Perfeito poema para imperfeitas vidas.
Bj
:)