quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Evolução


É que sou mesmo assim, bato os pés, o tempo todo, e minhas pernas ficam se movimentando mesmo quando estou sentado. Meus dedos estalam, como que ritmando o passar das horas. È um compasso incessante, com a cabeça seguindo a batida de sons que vocês não podem ouvir. Por isso parece estranho. E também me causa estranheza o fato de, só agora, quase depois de meio século de vida, descobrir o motivo pelo qual Chico Buarque discorre tão bem sobre a alma feminina: é que a alma masculina não tem a menor graça. Ela não traz consigo mistérios intrigantes, enigmas indecifráveis ou dramas psicológicos que valham um estudo ou uma letra de música. Me movimento ininterruptamente, enquanto leio, escrevo ou trabalho. Esse sou eu, apenas mais um estranho hiperativo. Queria repousar, mas minhas pernas me controlam, se movimentam sem parar, fazem as pessoas ao meu redor olharem para mim com curiosidade, e depois só balançam a cabeça, como que a entender o que está se passando com meu corpo. Não, vocês não entendem! Não gosto de festas, mas toda essa minha agitação até parece uma dança, um balé solitário que apresento ao mundo diariamente, mas que não faz o menor sentido... Tentei fazer tantas coisas para amenizar essa ansiedade e essa agitação, mas nenhuma deles surtiu efeito algum. Sou mesmo assim, pés em movimento o tempo todo, não me deixando descansar nunca. E só agora, depois de tanto tempo, consigo admitir por que os livros de Clarice sempre foram tão familiares para mim; é que eles narram com perfeição a dor e a doença de viver, a dor e a doença que enfrento todos os dias, aqui dentro, essa cabeça que não desliga, esse corpo que não descansa, e que me leva muitas vezes para um abismo que eu não quero enfrentar, mas que ela descreveu tantas vezes, tão sutilmente! E se eu simplesmente saísse correndo, como Forrest Gump? Sim, talvez resolvesse, já que não consigo mesmo parar... Voltas e voltas sem fim por lugares nunca imaginados, cruzando com pessoas que não entenderiam o que estava acontecendo comigo. Dias de sol, noites quentes, muita chuva, vento cortante. E quando eu enfim retornasse para esse meu canto, estaria meu corpo derrotado? O primeiro passo já foi dado, consegui admitir que sou mesmo assim, não tenho parada, não tenho um minuto, não tenho nada que faça minhas pernas pararem de me guiar por caminhos que eu não quero percorrer. Sou mesmo assim, e o que você está olhando? O barulho de meus pés batendo no chão te incomoda? Finja que é um sonho, é só assim que eu consigo enfrentar essa hiperatividade diária que trago comigo.

3 comentários:

Francisco Coimbra disse...

Acredito. Deste modo faço mais um testamento, este momento!
Beijos

Edu Café disse...

É interessante ser dito que a alma masculina "não traz mistérios intrigantes, enigmas indecifráveis ou dramas psicológicos". Mas isso é dito por uma voz masculina, que traz em seu depoimento exatamente o que diz não existir nos homens. E tudo isso escrito por uma mulher. Me dá a impressão de que alguém poderia escrever uma música sobre esse personagem.

Joana Masen disse...

Boa ideia Edu, acho que daria uma boa música!
Obrigada!