Antes a
vexatória condenação que o estigma da desonra.
Morrer dependurado ao mastro é menos vergonhoso que o heroísmo infecundo
do delator. Sempre haverá quem defenda o desagravo, a impertinência. Sempre
haverá quem defenda o contrário. Sempre haverá dois lados na mesma moeda.
Sempre haverá o carrasco e o condenado. E, do alto do púlpito, um missionário a
dizer as prédicas, enredando em seu discurso, a magnitude do fato. Exaltando o
lacaio. Incitando a traição nefasta. Mefistófeles cochichando gracejos ao
ouvido da populaça. Sempre haverá um motivo, afinal. A infâmia é um exemplo
supremo para coagir rebelados. Para debelar ações e levantes. É preciso criar
artifícios. Falsear documentos. Aniquilar inimigos. Conjurar.
Foi
escolhida a data. Ornamentos foram espalhados pela cidade. Bandeiras, flâmulas
e estandartes. Brasões e escudos. Lençóis estendidos nas balaustradas dos
casarios. Janelas fechadas seguidas por escuras cortinas a ocultar o interior
das casas. Como num baile de máscaras – tudo estava oculto sob a maquiagem – a
tragicomédia de um teatro inventado. Todos os fatos transbordavam
invencionices. Desde a acusação ao cadafalso. Desde o julgamento à execução dos
condenados. Tudo uma mentira intragável que só o povo enganado engolia de bom
grado.
Mas como
saberiam enganados se conheciam apenas uma versão dos fatos? Versão esta,
inimaginável em outros prados? Não. Não sabiam. E, festejavam. Como em noites
de Santos e levantamento de mastros. Bebericavam, à porta das adegas, sem
saber-se parvos. Ansiando pela hora triunfal em que os condenados seriam
arrastados da masmorra aos pés da forca no centro da praça. Eis que surge o
carrasco. Encapuzado em negro tom, aveludado. O manto negro e tons dourados.
Estrelas e estigmas em ouro lavrado. Acenando as mãos à multidão que gritava: “Morte aos traidores da Pátria! Morte aos
traidores da Pátria!” Jovens e
crianças se misturavam, suarentos de tanta devassa. Punhos cerrados erguidos
bem altos; gritavam juntos a mesma bravata: “Morte
aos traidores da Pátria! Morte aos traidores da Pátria!” E, sobre o palco do massacre encenado, o
carrasco agitava a massa exaltada. Erguia o braço, pedia aplausos,
algazarras. Estimulava o grito e o
refrão enervado: “Malditos sejam os
traidores da Pátria! Morte sem pena aos traidores da Pátria!” Pouco a
pouco, a praça estava intransitável. Pessoas surgiam de todos os lados e o
lugarejo de população minguada apresentava o espetáculo às centenas de
milhares. O prefeito em camarote erigido na sacada do casario oficial observava
o povo e, lá do alto, também acenava, retribuindo o entusiasmo dos pobres
diabos.
Eis que
surge dos pórticos da cadeia, dois homens franzinos, tão mal alimentados. O
corpo arqueado, fraqueza da alma. Arrastados por robustos e rudes comparsas,
das cenas que o povo espera extasiado. Tão belas as fardas oficiais. Coturnos
lustrosos de tanta graxa. A boina no alto da testa calva, dando imponência a
inúmeros soldados. São tantas autoridades espalhadas nas sacadas. Observatório
insólito de tantas mágoas. Prefeitos, padres, bispos e comendadores. Promotores,
juízes e advogados. Todos, em nome de Sua Majestade, praticam os ritos do punho
covarde: “mãos de ferro aos inimigos da
Pátria.”
Ninguém
reconhece os rostos bastardos, mal sabem o motivo de toda a contenda. Esperam
apenas a morte consumada daqueles que toda a pátria condena. A poucos importa
os nomes e a descendência, pois, mesmo que vivos, caminhem entre eles, já estão
mortos em sua sentença. Cospem-lhes o rosto, batem-lhes na cara. Insultam,
falam mal, praguejam. E, os condenados arrastam suas correntes. Guiados pelas
mãos de seus executores. Levam sobre os ombros o fardo da infâmia. O triste
vexame da condenação. A cabeça erguida, olhando no rosto de um povo doente a
colocar um laço no próprio pescoço. Não há o que fazer. Nem porque pedir
clemência. Resta-lhes o orgulho sombrio dos condenados que erguem o olhar nos
confins do tempo e crêem na justeza de sua morte. Nunca saberão se houve
sucesso em seus empreendimentos. Jamais terão respostas precisas sobre a
eficácia das sementes lançadas nesse solo infecundo. Nem mesmo as gerações
posteriores saberão. Pois, apenas eles têm a medida deste instante que se
aniquila ao último sopro de seus pulmões. Há quem se orgulhe dos heróis
assassinados. E, há quem se orgulhe dos assassinos. Há quem respeite os
revoltados. E, há quem os condene à ruína. São dois lados idênticos. Duas
forças que se retraem e se atraem retesadamente. Onde há bem está o mal
amalgamado. E tudo se contrai no mesmo casulo.
Ao centro
do tablado, cada qual sob um mastro, ouviu a sentença ser recitada aos brados: “Sr Barão Isidoro de Alcântara Atalaia
Vasconcelos Sobral, neste instante, sob as Leis Régias deste Império, és
destituído de todos os títulos, que outrora lhe foram concedido em nome do Rei.
Passando a ser um miserável condenado pelas mãos do Império, recebendo a pena
máxima em nome do Rei e diante de Deus Nosso Senhor.” É passada a corda em torno do pescoço.
Extasiado, o povo ovaciona o Rei. Num sinal de braços o orador pede silêncio e
prossegue: “Sr Duque Artur da Alvorada
Resplendor Simões, neste instante, sob as Leis Régias deste Império, és
destituído de todos os títulos, que outrora lhe foram concedido em nome do Rei.
Passando a ser um miserável condenado pelas mãos do Império, recebendo a pena
máxima em nome do Rei e diante de Deus Nosso Senhor.” Uma segunda corda
fora ajustada ao outro pescoço. E, a massa aplaudiu fervorosamente o carrasco
que voltou a cena.
Nada fazia
sentido aos condenados. Morrer não seria a pior desgraça. Ainda que vexatório
fosse o fato. Estavam diante de desconhecidos. Os parvos sequer sabiam de quem
se tratava. Ali não havia ninguém das famílias. Os títulos, anteriormente
mencionados, só eles sabiam nunca existirem.
A lição seria mais bem medida, tratando-se de homens ilustrados, com
estirpe e índole de boa família. Isso
pouco importa. As cordas no pescoço ajustadas, o bispo a pronunciar suas
prédicas: “Deus salve a alma indulgente
dos condenados. Tende piedade, Senhor, Rei dos Céus, dos pecados dessas pobres
almas desgarradas. Em sua infinita bondade, abrandai a pena que os aguarda na
eternidade.” Aberto o alçapão, num solavanco, os corpos dançaram no ar,
como um par numa valsa sombria. Findo o espetáculo macabro a praça se tornou
deserta novamente. Alguns curiosos iam mais perto do cadafalso observar a face
estrangulada. Outros benziam-se, afastando rapidamente. Até que os dois
enforcados ficaram sozinhos. Balançando ao ritmo do vento.
Um comentário:
Muito bom e bem criativo.
Abração Flávio meu véi.
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