terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Os enforcados


          
           Antes a vexatória condenação que o estigma da desonra.  Morrer dependurado ao mastro é menos vergonhoso que o heroísmo infecundo do delator. Sempre haverá quem defenda o desagravo, a impertinência. Sempre haverá quem defenda o contrário. Sempre haverá dois lados na mesma moeda. Sempre haverá o carrasco e o condenado. E, do alto do púlpito, um missionário a dizer as prédicas, enredando em seu discurso, a magnitude do fato. Exaltando o lacaio. Incitando a traição nefasta. Mefistófeles cochichando gracejos ao ouvido da populaça. Sempre haverá um motivo, afinal. A infâmia é um exemplo supremo para coagir rebelados. Para debelar ações e levantes. É preciso criar artifícios. Falsear documentos. Aniquilar inimigos. Conjurar.
Foi escolhida a data. Ornamentos foram espalhados pela cidade. Bandeiras, flâmulas e estandartes. Brasões e escudos. Lençóis estendidos nas balaustradas dos casarios. Janelas fechadas seguidas por escuras cortinas a ocultar o interior das casas. Como num baile de máscaras – tudo estava oculto sob a maquiagem – a tragicomédia de um teatro inventado. Todos os fatos transbordavam invencionices. Desde a acusação ao cadafalso. Desde o julgamento à execução dos condenados. Tudo uma mentira intragável que só o povo enganado engolia de bom grado.
Mas como saberiam enganados se conheciam apenas uma versão dos fatos? Versão esta, inimaginável em outros prados? Não. Não sabiam. E, festejavam. Como em noites de Santos e levantamento de mastros. Bebericavam, à porta das adegas, sem saber-se parvos. Ansiando pela hora triunfal em que os condenados seriam arrastados da masmorra aos pés da forca no centro da praça. Eis que surge o carrasco. Encapuzado em negro tom, aveludado. O manto negro e tons dourados. Estrelas e estigmas em ouro lavrado. Acenando as mãos à multidão que gritava: “Morte aos traidores da Pátria! Morte aos traidores da Pátria!”  Jovens e crianças se misturavam, suarentos de tanta devassa. Punhos cerrados erguidos bem altos; gritavam juntos a mesma bravata: “Morte aos traidores da Pátria! Morte aos traidores da Pátria!”  E, sobre o palco do massacre encenado, o carrasco agitava a massa exaltada. Erguia o braço, pedia aplausos, algazarras.  Estimulava o grito e o refrão enervado: “Malditos sejam os traidores da Pátria! Morte sem pena aos traidores da Pátria!”   Pouco a pouco, a praça estava intransitável. Pessoas surgiam de todos os lados e o lugarejo de população minguada apresentava o espetáculo às centenas de milhares. O prefeito em camarote erigido na sacada do casario oficial observava o povo e, lá do alto, também acenava, retribuindo o entusiasmo dos pobres diabos.
Eis que surge dos pórticos da cadeia, dois homens franzinos, tão mal alimentados. O corpo arqueado, fraqueza da alma. Arrastados por robustos e rudes comparsas, das cenas que o povo espera extasiado. Tão belas as fardas oficiais. Coturnos lustrosos de tanta graxa. A boina no alto da testa calva, dando imponência a inúmeros soldados. São tantas autoridades espalhadas nas sacadas. Observatório insólito de tantas mágoas. Prefeitos, padres, bispos e comendadores. Promotores, juízes e advogados. Todos, em nome de Sua Majestade, praticam os ritos do punho covarde: “mãos de ferro aos inimigos da Pátria.”
Ninguém reconhece os rostos bastardos, mal sabem o motivo de toda a contenda. Esperam apenas a morte consumada daqueles que toda a pátria condena. A poucos importa os nomes e a descendência, pois, mesmo que vivos, caminhem entre eles, já estão mortos em sua sentença. Cospem-lhes o rosto, batem-lhes na cara. Insultam, falam mal, praguejam. E, os condenados arrastam suas correntes. Guiados pelas mãos de seus executores. Levam sobre os ombros o fardo da infâmia. O triste vexame da condenação. A cabeça erguida, olhando no rosto de um povo doente a colocar um laço no próprio pescoço. Não há o que fazer. Nem porque pedir clemência. Resta-lhes o orgulho sombrio dos condenados que erguem o olhar nos confins do tempo e crêem na justeza de sua morte. Nunca saberão se houve sucesso em seus empreendimentos. Jamais terão respostas precisas sobre a eficácia das sementes lançadas nesse solo infecundo. Nem mesmo as gerações posteriores saberão. Pois, apenas eles têm a medida deste instante que se aniquila ao último sopro de seus pulmões. Há quem se orgulhe dos heróis assassinados. E, há quem se orgulhe dos assassinos. Há quem respeite os revoltados. E, há quem os condene à ruína. São dois lados idênticos. Duas forças que se retraem e se atraem retesadamente. Onde há bem está o mal amalgamado. E tudo se contrai no mesmo casulo.
Ao centro do tablado, cada qual sob um mastro, ouviu a sentença ser recitada aos brados: “Sr Barão Isidoro de Alcântara Atalaia Vasconcelos Sobral, neste instante, sob as Leis Régias deste Império, és destituído de todos os títulos, que outrora lhe foram concedido em nome do Rei. Passando a ser um miserável condenado pelas mãos do Império, recebendo a pena máxima em nome do Rei e diante de Deus Nosso Senhor.”  É passada a corda em torno do pescoço. Extasiado, o povo ovaciona o Rei. Num sinal de braços o orador pede silêncio e prossegue: “Sr Duque Artur da Alvorada Resplendor Simões, neste instante, sob as Leis Régias deste Império, és destituído de todos os títulos, que outrora lhe foram concedido em nome do Rei. Passando a ser um miserável condenado pelas mãos do Império, recebendo a pena máxima em nome do Rei e diante de Deus Nosso Senhor.” Uma segunda corda fora ajustada ao outro pescoço. E, a massa aplaudiu fervorosamente o carrasco que voltou a cena.
Nada fazia sentido aos condenados. Morrer não seria a pior desgraça. Ainda que vexatório fosse o fato. Estavam diante de desconhecidos. Os parvos sequer sabiam de quem se tratava. Ali não havia ninguém das famílias. Os títulos, anteriormente mencionados, só eles sabiam nunca existirem.  A lição seria mais bem medida, tratando-se de homens ilustrados, com estirpe e índole de boa família.  Isso pouco importa. As cordas no pescoço ajustadas, o bispo a pronunciar suas prédicas: “Deus salve a alma indulgente dos condenados. Tende piedade, Senhor, Rei dos Céus, dos pecados dessas pobres almas desgarradas. Em sua infinita bondade, abrandai a pena que os aguarda na eternidade.” Aberto o alçapão, num solavanco, os corpos dançaram no ar, como um par numa valsa sombria. Findo o espetáculo macabro a praça se tornou deserta novamente. Alguns curiosos iam mais perto do cadafalso observar a face estrangulada. Outros benziam-se, afastando rapidamente. Até que os dois enforcados ficaram sozinhos. Balançando ao ritmo do vento. 

Um comentário:

Cássio Amaral disse...

Muito bom e bem criativo.

Abração Flávio meu véi.