segunda-feira, 14 de abril de 2008

O vô fatal de Isabella

No final do expediente, o pessoal do trabalho parou para tomar um cafezinho. O assunto poderia ser a derrota do Flamengo, poderia ser mais um flagrante de corrupção na cúpula do governo ou até a nova cor vermelha da cobiçada secretária Shirlei. Mas não, o assunto é o mesmo que toda a imprensa escrita e televisiva traz em manchetes nos últimos dez dias: o vôo fatal da menina lançada pelos próprios pais através da janela do sexto andar.
Adultos, crianças e velhos, todos estamos chocados por mais uma tragédia. A história é esmiuçada em detalhes sórdidos. Uma criança indefesa é espancada e asfixiada justamente por aqueles que deveriam dar conforto e segurança. O local do crime é a própria moradia, o lugar onde seria seu porto seguro. A verdadeira mãe não demonstra a dor desesperada pela perda da filha. Há provas da premeditação de crime devido ao corte da tela de proteção da janela antes do arremesso. O terrível estigma de ódio e ciúmes de uma madrasta pela enteada é resgatado e multiplicado. O choque de imagens da família feliz nas horas que antecedem o crime se superpõe ao cadáver da criança na grama. Aparentemente não há indícios que outras pessoas estievesem no apartamento na mesma hora da bárbarie. De onde, facilmente, qualquer leigo, conclui que os assassinos só podem ser os próprios pais.
O crime aconteceu na última sexta-feira do mês de março e até agora a polícia ainda não divulgou o nome dos criminosos. Meia centena de pessoas foi interrogada. Os pais foram presos por flagrante e soltos por habeas corpus. Quase linchados e presos novamente. A população tem ânsias de justiça. Tudo parece óbvio. Mas não é.
Se a justiça brasileira não está externando os resultados das investigações é porque deve haver outras razões misteriosas e ocultas.
Talvez o pai seja um agente russo infiltrado no Edifício London. Talvez a perícia tenha descoberto um túnel subterrâneo ligando o apartamento a uma agência do Banco do Brasil localizada a apenas três quadras de distância. Talvez os pais da Isabella quisessem enviar a filha para estudar no exterior. Talvez a madrasta tenha contribuído com enormes somas de dinheiro, oriunda de lavagem de dinheiro, para a campanha eleitoral de um deputado influente. Talvez o casal faça parte da rede de internacional de traficantes de cocaína e por isso tenha proteção de algum governo vizinho com o qual nosso país deseja manter as ótimas relações.
Não, nem eu, nem ninguém, consegue inventar qualquer desculpa plausível que justifique a não acusação formal do casal. No nosso país ninguém, que não tenho bons advogados, é incriminado.
Brasileiros não punem falta de respeito, falta de ética ou de moral e a conseqüência é a impunidade também para todos os tipos de crimes. As autoridades mentem, ameaçam, chantageam, insultam, enriquecem de ilícitos e não são castigados. São os nossos exemplos.
E, daqui a quinze dias, ao final do expediente, no cafezinho discutiremos como fomos obrigados a acreditar que a pequena Isabella caiu da janela ao tentar pegar um vaga-lume que pisca-piscava alegria e inocência.
Agora só falta Isabella cair no esquecimento.

Um comentário:

Deveras disse...

Grande reflex�o, Mestre K. Compartilho contigo de tal indigna�o, e fico mais triste em constatar que se n�o houver uma a�o de toda a sociedade, tudo continuar� como antes. Tudo n�o; haver�o novos crimes b�rbaros; semanas antes era o caso da menina torturada em Goi�nia, meses antes, o garoto Jo�o H�lio, fora dos jornais, milhares de outros sofrem de maneira an�loga, ou pior. O problema � que n�s, brasileiros, n�o fazemos nada al�m de comentar, falr se exasperar. Na mesa de caf� de boteco ou de sinuca. NA verdadeira hora de reclamar, na hora do voto, ou na hora de ir para as ruas e protestar contra a mar� quer dizer, o tsunami de imoralidades e impunidades que assolam o pa�s, nessa hora nos calamos. E seguimos esperando a pr�xima trag�dia acontecer...

Muito bom, lembrar que a literatura n�o deve se eximir de enfiar o dedo na ferida.

E remexer fundo, para que talvez, com o podrido que exale de l� juntamente com o pus das autoridades incompetentes desse pa�s.

ficanapaz