sábado, 10 de julho de 2010

Carta à Clarice



Se está viva ou não está, eis que escrevo-lhe uma carta. Aquela que te enviaria se eu tivesse um endereço. Aquela que instiga meus dedos a encontrar as teclas e te encontrar mais concreta; tu que me encontras contemplativa e difusa, não respeitando noite, dia ou quem quer que esteja ao meu redor. Não. Não é desrespeito, é permissividade. Abro-me, pode me usar, se é sua mão que pousa sobre a minha quando escrevo justamente para você mesma, então toma-me.

Seus instantes-já me adotam. Me vestem de coisa inteira; há transbordo, quase jorro. E o amor é e quase não é, mas ainda é mesmo que não aparente. Quero te contar que todos estão errados e estão certos, mas acho que isso você já sabia.

A selva que cresce à minha volta, quero te revelar que é aberta, traspassável. Meus rins purificam as coisas, mas eu ajudo com um pouco de discernimento.

Seus olhos, desculpa-me, mas já desvendei. Prometo não contar a ninguém além de quem também entenda. Os labirintos lascivos que tentara esconder e revelar me são agora claros como dia e o gozado é que são obscuros.

Olho.

Cheiro.

Vejo.

Toco.

Ouço.

Tudo agora é e não era antes; o é se faz a cada instante, mas já era antes de se fazer. Meu oscilar se torna arfante enquanto lambo um momento de desejo feito torrente nascida do meu cerne.

Você entende. Isso é afirmação. A dor que eu via brotar feito suor em sua testa sempre fora tão visível. Como se você caminhasse levando pesada bagagem. E era só a si mesma que levava e isso era muito porque eram mil mulheres e mil anseios numa só. Parecemos. Eu olho-me no espelho e aquela que fui lentamente se torna na que sou e na que serei.

Epifania.

Eu vejo de antemão as mudanças, e elas são tão sutis. Elas se fazem lentas como quem quer mostrar-se, ainda assim tem quem não veja.

Sinto te dizer que a morte não apagou os traços de espuma que o mar deixou na praia, tem tantos outros seres que não o permitem.

E agora é um instante.

Já é outro e mais outro.

E eu me excito a cada palavra que a mente inventa. Escrever me é excitante. Porque há uma relação bem envolvente entre o nascer e o morrer de uma palavra, pois que seu morrer não é mais do que um instante e ecoa numa parede oca e escura de imensidão.

Incêndio.

Sou-me. Como tu o é. Como cada olho vê e sente.

O que escrevo é como maçã suculenta; o morder excita e um suco corre pelo canto da boca.

Ouve-me. Ouve meu silêncio. Capto essa outra coisa que você fala e se antes você não a entendia me dói, porque agora eu entendo e tento te dizer. O it, tão misterioso quanto seus órgãos mais inacessíveis. O que ele é pode não ser conhecido, mas é algo maior e isso é muita coisa.

E é novo instante. E mais outro e outro.

Me diga: de que cor é o infinito espacial? de que cor é o ar?

2 comentários:

Joakim Antonio disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Joakim Antonio disse...

Em cartas revelamos traços em palavras, que se tornam traços, tanto do remetente quanto do destinatário.

Parabéns!