quarta-feira, 21 de maio de 2008

Via Crucis


Do alto do segundo andar de um prédio classe média avista um rato morto no telhado da garagem visto de cima. Pela janela lateral, o prédio largo de quatro andares e seis janelas, começa a se esconder atrás da nova construção de um outro edifício. Do lado esquerdo, outro em construção, mais imponente, estreito e vertical. Homens trabalhando durante todo o dia, e o corpo do rato estirado na curva da eternite.


Os carros vão e vem freneticamente, alguns faróis se acendem em plena tarde, velhos correm ao atravessar a rua sobre a faixa de pedestre, enquanto crianças dão risadas na esquina em seus uniformes sujos na saída da escola. Alguns pais carregam as mochilas de seus filhos e nem os notam, apanhando as folhas do arbusto esverdeado.


A cidade conserva casas de arquitetura antiga e muitos penteados também. Uma jabuticabeira se espreguiça do fundo de um quintal qualquer e as motocicletas apressadas buzinam para que o pedestre se apresse. Todos os telhados guardam sujeira, todos os ônibus aguardam por um sinal.
Seu Virgílio, do alto do segundo andar, suspira e tem a sensação de que tudo ultimamente vem perdendo o sentido. Não sabe se é nostalgia de sua mocidade, se o cansaço não lhe permite felicidade, mas as coisas não contemplam o mesmo sentido. Não mesmo.


A cidade vai se perdendo de vista no horizonte, quanto concreto o separa de sua juventude, ou quanta juventude se separa de sua mocidade? Ele já não é apenas um senhor de meia idade. Não pode sair à rua para caminhar sozinho. Luzes se acendem, uma a uma, de modo gradativo e quase imperceptível, tal como os fios brancos agredindo os raros louros no couro cabeludo e aquela sensação de vitalidade mortal.


Um dia quando ele beijou a primeira namorada no carona do amigo Ronildo, não conseguiu entender que Lena chorava por um sentimento maior que aquele momento. Não poderia pensar em outra coisa, senão no desejo de que tudo terminasse do modo comum para qualquer homem viril em sua idade. Sentimentos díspares em idades iguais. O momento para ele prova de sua moral, para ela transcendia o corpo. E Lena consentiu aquilo por três finais de semana até sua partida em um ônibus sem cor e devotamento. O céu parece o mesmo, no lugar do passado, como resquícios de vento penetrando os orifícios da vidraça.


Tudo possui nome, mas não possui face, são flashes em representação de algo que nunca aconteceu: a vida. O que seria agora, se não fosse o que viveu?
Virgílio sofre de gota e diabete. Os músculos murcharam sem que percebesse, o abdômen liso derramou-se e o ânus toma mais o seu tempo, que um dia lhe tomara o pênis.

2 comentários:

Freddie disse...

O conto me chamou a atenção pela vitalidade. Claro que é uma expressão contundente da vida. Desde um rato morto ignorado pelos carros que circulam frenéticamente pelas ruas... até os idosos que correm para conseguir atravessar a faixa de pedestres... há um mundo que finda e outro que se inicia com a construção de um novo prédio, há uma vida em trânsito representada pelas crianças vindas da escola... A conservação de prédios antigos e a aproximação das luzes que se acendem com os fios brancos me dá a impressão de que a vida alcançou seu ápice, as lembranças reavivadas contém em si a mesma vitalidade do mundo que o cerca... O hoje observador, mesmo sendo apenas expectador da vida em trânsito, encontra no que foi vivido uma forma de sobreviver com o minímo. Se a vida é uma preparação para a morte, a maior expressão de vitalidade é a velhice, pois sobre os seus ombros repousa a carga da existência. Enfim, seu texto me fez viajar, gostei demais. Abraço!

Larissa Marques - LM@rq disse...

Muito bom, não apareceu no mês passado, desistiu do manufatura?