sexta-feira, 28 de novembro de 2008

A Casa do Jornaleiro


O céu envenenado disseminava angústia pelo vilarejo. Arrastavam-se os transeuntes de maneira silenciosa, com o ânimo que ainda lhes restava. Árvores de galhos secos ladeavam toda a extensão da rua e ofereciam repouso às aves, criando a imagem perturbadora do fim de tarde. Enquanto os habitantes da rua Thanatos gradativamente trancavam as portas, a figura solitária de Mariane tomava forma e seguia em direção à tabacaria. Fazia parte do ritual. A menina da boneca de pano e do vestidinho branco tinha o hábito de brincar em meio à penumbra, em frente ao estabelecimento do pai.

Uma pequena fresta, ao lado da janela lacrada do sótão, permitia ao jornaleiro observar os gestos do vulto que se deslocava na rua. Às vezes, a pouca luminosidade que incidia sobre a região, geralmente advinda da lâmpada da tabacaria, embaçava a visão do jornaleiro, privando-o, momentaneamente, de fitar o semblante de Mariane. Acometido de curiosidade, o observador tentava conservar os olhos na menina, a fim de se surpreender com o inusitado, embora a longuidão dos dois últimos anos não tenha oferecido o novo ao vilarejo. As ações humanas, exercidas naquele local, mostravam-se mecânicas. Não havia disposição, por parte de algum possível sublevador, para cessar o curso natural dos acontecimentos.
Entrou na tabacaria um peão. Encontrou-se com o pai de Mariane, com o objetivo de cumprir as devidas formalidades.

- Uma hora é o tempo que tens. Não mais! – estipulou o dono da tabacaria.

- Uma hora é o tempo que tenho. Sou cliente assíduo. Hei de desempenhar minha fidelidade. – asseverou o peão.

Ao sair da tabacaria, o visitante foi dar com Mariane.- Diga-me, guria, diga-me o nome da boneca.

- ...

- Ara, pimpolha, tenho um brinquedo que irá agradá-la.

Tomando a menina resignada pelas mãos, o peão a carregou para o lugar mais escuro da rua. Após uma hora, ambos estavam de volta à frente da tabacaria.

A casa do jornaleiro, do outro lado da rua, observava tristonha a inocência infantil. Se não estivesse submetida à ociosidade, certamente tomaria atitudes que seu alojado não providenciava. Mas quem espera que uma casa inconformada adote forças para subverter práticas delituosas? Talvez o jornaleiro, que a tudo observa, mas a nada contrapõe.

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Amanhece no vilarejo. Os louváveis trabalhadores caminham infelizes, cumprindo o ciclo inquebrantável da ordinariedade. Mais um dia que se repete!

4 comentários:

Larissa Marques - LM@rq disse...

Que bela estréia! Que bom que está com a gente! Admiro seus textos! Esse é muito bom, trata de um assunto intragável mas que acontece muito, em vários contextos!
Sê bem vindo!

melile disse...

olha, gostei muito, ricardo!
está realmente muito bom, como todos os seus outros contos, sem dúvida!
avise sempre que tiver novidades, gosto de ler seus escritos :)

Anônimo disse...

Oi Ricardo!
Muito legal seu conto!! Adorei!! Você sempre teve jeito com as palavras!
Boa sorte nos próximos trabalhos!
Bjão!

Unknown disse...

parabéns Riicardo,
muiito bom seu conto..
o soneto Bandeira branca da Razão também é muiito bom!
beiijos