
acender as velas
e ir além:
guiai-me
São Leminski
cheio de álcool
e São Baudelaire
cheio de pólvora
amém
O
O
Ao
* Publicado no livro Memórias à Beira de um Estopim, 2005
(O livro pode ser adquirido pelo valor de 10 reais. Pedidos pelo meu e-mail: nolli@bol.com.br)
*Minha rotina está complicada! Adorei o tempo que passei aqui...Peço que me substituam, um abraço forte em todos e até a próxima!
Álcool
Bebe e não é pouco. Passa em média apenas dez horas por dia em estado sóbrio, sendo oito horas dormindo e cerca de duas horas entre o banho e o café da manhã. Deixa sempre uma garrafa próxima ao telefone, muitas vezes ao lado deste.
Mora sozinho, mas nem sempre foi assim. Já foi casado e certa vez quase foi preso por bater na esposa. Ela retirou a queixa na delegacia antes que ele fosse indiciado e os dois se divorciaram. Não tem emprego? Sim. Hoje trabalha em uma loja de sapatos, porém já foi dono de uma empresa de consultorias, já teve até clientes russos e alguns alemães. O alcoolismo o fez perder o controle sobre os negócios, seus sócios então conseguiram, no tribunal, invalidar a sua parte na sociedade e ele perdeu tudo.
Acorda cedo não porque gosta, mas para ter tempo de entrar em todos os bares a caminho do trabalho. Sua função na loja é organizar todo o estoque de sapatos do depósito por marca, tamanho, cor, mais caros e mais baratos. Desempenha um bom serviço, sobrando tempo para desembrulhar a sacola escondida na bolsa contendo uma garrafa, às vezes duas.
Dentro do depósito ele tinha acesso a todas as informações omitidas pelo dono da loja como sonegação de impostos, mercadorias falsificadas e preços alterados. Sempre teve vontade de ganhar dinheiro com uma chantagem, ameaçar ligar para a Fiscalização Pública, no entanto sabe que não tem coragem de enfrentar o patrão.
Seu maior medo era ser descoberto se embriagando dentro do depósito. E foi. Demitiram-no. Nesse dia não voltou a sua casa. Chegou somente pela manhã, cambaleando, quebrando alguns objetos da sala como o cinzeiro favorito e um porta-retratos. Largou-se no sofá e deixou o chapéu cair ao chão. Viu ali uma garrafa em cima da mesinha do telefone. Alcançou-a, tomou três grandes goles daquele líquido e discou um número que havia decorado.
- Alô! – a voz saiu com dificuldade. – É da Fiscalização Pública?
- Foi o tio.
Olhei para Lulinha e balancei a cabeça afirmativamente. Ele estendeu as mãos para que eu soltasse as algemas. Acertei o tiro entre os sobrolhos.
Sim, menti para o bandido. Disse que o soltaria se confessasse, coisa e tal. Tratei-o sempre bem educado e calmo. Sou diferente do que ele tá acostumado: a intolerância, o linguajar xulo, a gritaria. Ele confiou em mim. É preciso conhecer o homem para ludibriá-lo.
Entrei no caso Anabela a pedido dum sujeito que viu o Lulinha perambulando no local onde a polícia achou o corpo da menina. Ela estava desaparecida há 56 dias, haviam achado seu crânio há mais de uma semana. O corpo foi encontrado só no dia seguinte. Pensaram que ela havia sido decapitada, mas descobriram que o crânio caiu num deslocamento do cadáver para escondê-lo. O sujeito me mandou um email assim que viu na televisão a polícia desconfiando do bandidinho.
As investigações estavam difíceis, a família parecia não colaborar. Descobriram, contudo, possibilidades sórdidas, um provável caso de vingança. Alguns anos atrás, o irmão de Anabela havia estuprado a prima. O tio, pai da menina, jurou vingança. Na época abafaram o caso, como se isso contornasse o problema.
Capturei Lulinha e ele confirmou a história. Disse que um cara o havia pagado para estuprar uma garota. – Até de graça. – Respondeu o bandidinho (que agora é comida de minhoca). Ele pegou carona com o cara e a menina, que parecia ser parente, foram para um matagal em Samambaia, o tio saiu do carro e Lulinha cumpriu o serviço.
- Você é um filho da puta. – Ela urrou. – Vai morrer com um tiro no sobrolho.
O bandidinho contou que não gostou da palavra, ficou com raiva. Quem era a vagabundinha para falar assim? Ele havia acabado de lhe botar no cu e vinha agora com aquela babaquice de tiro não sei onde, querendo tirar sarro de esperta? Deu um soco na têmpora da menina. Ela caiu com o pescoço sobre o câmbio da marcha, sua glote fechou. A violência do soco já a havia ferido seriamente com um deslocamento na nuca. Em minutos ela estava em convulsão.
- Juro, falei para ele levar a garota para o hospital. – Confessou Lulinha, algemado. – Mas o tio preferiu deixar a moça morrer. Disse que esconderia direitinho o corpo.
- Por que vocês mexeram no cadáver uns 20 dias depois, quando a cabeça caiu? – Perguntei.
- Fui eu sozinho. – Revelou. – O caso ganhou os jornais, os canas começaram a fuçar, resolvi esconder melhor a menina pois minha porra ainda tava nela, né? O tio deixou o corpo numa beira de córrego, disse que ia apodrecer. Se achava malandro, queria que me ganhassem. Me pagou em dinheiro, eu não teria como dedar o patrão para amaciar com os canas.
- O chefe de tudo, então...
Ele confirmou que foi o tio e atirei. Joguei o corpo na caçamba da camionete, cubri com a lona e liguei para o meu contato de um orelhão.
- Você estava certo. O serviço está encerrado.
- Como é? – Falou. – Você ainda não viu as notícias? – O silêncio o incentivou a continuar. – A polícia descobriu provas contra o tio. Barro e plantas no carro coincidem com as encontradas na área da desova, ligação de celular no dia do seqüestro da mesma área, até encontraram porra no cadáver. Divulgaram agora que estão procurando o tio para um exame de DNA. Com mandado e tudo.
Com o bandidinho morto no meu carro e a polícia ao encalço do tio, eu teria dificuldades em terminar a punição. A grande vantagem de caras como eu em relação à Justiça é que não precisamos de leis. Descobrimos o culpado e o executamos. Sem defesa, sem desculpa. Nenhum contraditório será capaz de justificar certos atos agressivos à condição humana. A eles, a morte. Uns requintes de crueldade também são benvindos em alguns casos aberrantes. Para o tio eu pensava em algumas decapitações de membros. Mas agora eu havia perdido a surpresa e a liberdade de ação. Justiceiros sempre agem na tocaia, contando com a surpresa da vítima. Em combates corpo a corpo sempre acabo machucado. A polícia me apavora. Cumpro todas as regras para sumir com os vestígios, porém posso dançar se agir muito perto das investigações. Tento sempre ficar na surdina. Teria que dar um jeito de pegar o tio sem me sujar.
- Sabem onde ele está?
- Acabou de passar por aqui. – Falou. – Eu queria te ligar mas você não tem telefone... – Choramingou.
- Alguém mais o viu?
- Todo mundo, né, o tio da Anabela tá na televisão. – O sujeito estava informado.
- Ligue para a polícia e diga que o que viu. – Expliquei. – Está tudo resolvido. – Murmurei.
Fui para a região de Samambaia. Larguei o cadáver atrás dum morro. O revólver com a numeração raspada deixei na beira da estrada. Estava limpo de digitais, indício que foi utilizado pelo assassino. Nem me importei se viram meu carro. As provas já estavam engatilhadas contra o tio.
A polícia chegou e logo atrás veio a imprensa. Acompanhei tudo de binóculos. O meu contato disse aos canas que o tio havia passado pela estrada em que fiz a armadilha. Acharam primeiro o cadáver, como eu previa. Buscaram ao redor e acharam o revólver. Concluíram corretamente que o responsável era o tio. A imprensa narrou as descobertas ao vivo e informou a caça ao indiciado. O tio foi preso em seguida. Foto na televisão, coisa e tal.
Revelada a vingança do tio, a sociedade se estarreceu. O sujeito que me avisou por email, no anúncio dum fórum de justiceiros, virou herói pela denúncia à polícia. Discursaram que o cidadão tem a obrigação de agir nos momentos difíceis. Eu o alertei que se citasse meu nome o mataria como a um cão. Ele respeitou o pedido.
Anabela acabou justiçada. O tio que tramou o crime certamente levará umas curras na jaula. O bandidinho virou presunto. A vida da moça foi encerrada por vingança à um erro do próprio irmão acobertado pelo pai. Na minha visão também são responsáveis, mas a polícia dificilmente encontrará provas para chegar até eles. Se os prende, ainda, os tribunais os soltarão por conta de bobagens jurídicas.
Talvez eu faça uma visita à antiga residência da moça, assim que a poeira baixar.
Vejo nos teus olhos
(Janelas da Alma)
As palavras
Das minhas poesias.
Mas elas são tuas,
Não minhas.
André Espínola