domingo, 24 de junho de 2007

Soneto

      II
                                                          31/08/03
 Foto de Francesca Woodman

Nasci em um grande espasmo, num dia onze de setembro, enquanto aviões desnorteados cruzavam os céus de Manhatam para chocarem contra o corpo dos prédios. Mas minha gestação foi longa: o sexo que me deu o suspiro da vida ocorreu à sombra de uma cruz. Desenvolvi em um útero

que, aos trancos e barrancos, conteve-me – seja descansando às margens dos lagos de napalm em 45, no frescor dos arrozais devastados em 66, ou à sombra do muro, dos muros (entre gritos, disparos e murros) em 80. Em tantos outros muros e grades ainda de , fui a c a l e n t a d o.

Ao longo dos anos, passeei em belos carros-bomba; estive nas reuniões onde a mão riscava o mapa e a estratégia riscava o inimigo. Vinte anos fardados ditaram meu fardo. O leite que mamei na teta mecânica do mundo em ruínas me 

trouxe um gosto ruim à boca e privou-me do hálito de coragem. Não sou filho do carbono, da carne nem da fermentação de partículas e éter – sou filho da incompreensão, gerado no seio da noite e parido pela boca faminta da desgraça!



Do Livro Memórias à Beira de um Estopim, edição independente, 2005

7 comentários:

medusa que costura insanidades disse...

"sou filho da incomprensão",acho que somos irmãos rs.....um texto marcante,adorei!

Larissa Marques - LM@rq disse...

Tive o prazer de receber o livro, degustei como esses vinhos raros, de boa safra, esse poema me marcou de uma forma latente, falar de si não é fácil. Aliás é um rasgar-se em regalo, para mostrar a ferida!
Adoro seu estilo confessional, que deixa fluir o escatológico. Sê bem-vindo!
Beijo grande!

Marla de Queiroz disse...

Rafael,
Texto forte,belo e com seu sotaque.

Beijos.

flaviooffer disse...

Caramba... Seu texto revela as marcas do tempo no tempo...a crueldade d'um sistema que domína e cria(gera) seu próprio câncer que corrói a si mesmo.

Glauber Vieira disse...

Se eu fosse poeta, gostaria de ter esse talento. Nâo é leitura fácil. Como disse Larissa: é como um vinho caro, que deve ser degustado aos poucos.
Parabéns, cara. Tá no caminho certo.

Anônimo disse...

Pessoal, agradeço o carinho! Obrigado!

Isaias de Faria disse...

como diz o hegel: " a única lição prática da história é que ninguém aprende com lições práticas da história" grande poema meu caro!