sábado, 5 de maio de 2007

Contra-Proposta ao Diabo


Era uma noite escura e fria. Chovia suavemente; uma chuva do tipo que não molha, apenas esfria. A lua cheia estava alta num céu emaranhado de nuvens carregadas que não deixavam à vista nenhuma estrela. O asfalto molhado da rua deserta refletia o brilho da lua juntamente com as pequenas poças inquietas com os mínimos pingos de chuva que caíam.
Estava voltando andando para casa. Havia ainda muito caminho ainda pela frente. Resolvi parar em um bar de esquina para tomar um vinho para esquentar o sangue.
O bar era muito sujo e havia apenas uns dois bebuns sentados com várias garrafas de cerveja vazias e uma pela metade. Pela aparência, julgar-se-iam muito bêbados.
Eu não pretendia ficar muito tempo.
Pedi um vinho ao garçom.
Enchi meu copo e levei-o à boca. Gostoso trago.
Nesse momento um rapaz de aproximadamente vinte e cinco anos entrou no bar e sentou-se ao meu lado.
Também pediu um vinho.
- Olá, sou o diabo. – falou-me seriamente.
Eu sorri e disse:
- Olha, vai brincar ali com aqueles dois bêbados que eu não estou ainda nesse nível.
Ele sorriu-me com escárnio, segurou com a mão meu copo de vinho e congelou-o, olhando-me fixamente.
Arrepiei-me.
- É verdade? – perguntei com a voz tremendo.
- Sim. – e bebeu mais um trago de seu vinho.
Fiquei pelo menos um minuto sem falar nada, apenas tremendo todos os meus ossos e bebendo o máximo que podia. Pedi outro vinho.
Ele continuava a olhar-me.
Percebendo que o demônio queria alguma coisa comigo, respirei fundo para tomar coragem e disse-lhe:
- O que você quer?
- Sua alma. – respondeu-me como se já soubesse da pergunta.
- E como é que você vai pegá-la? – perguntei já um pouco mais de confiança, pois minha raiva aumentava progressivamente.
- Eu lhe ofereço tudo que você desejar. Mulheres, quantas quiser; uma quantidade de dinheiro que nunca acaba; poder ilimitado, sobre todas as pessoas que você quiser. Você poderá ter tudo em suas mãos. Apenas deve se comprometer a, quando você morrer, entregar-me sua alma.
Olhava-me esperando a resposta.
Tomei um trago do vinho e falei:
- Cara, você pode mesmo ser o capeta, o diabo, demônio ou como preferir ser chamado. Apenas não entendo como você sempre aparece para as mesmas coisas. Afinal, foi isso mesmo com Fausto, Macário, você não conhece inovação? Uma nova forma de contato, de proposta? Pois então, para lhe ensinar eu também faço uma proposta – falei meio que inconsciente.
Apenas deixei as palavras saírem da minha boca. Em sã consciência, não falaria essas coisas, principalmente direcionadas à pessoa que era.
Ele, que não esperava uma resposta desse tipo, ficou sem reação. Após refletir um pouco, disse:
- Tudo bem, quero ouvir-lhe. Qual sua proposta?
- Viva a vida de um mortal.
O som da risada do diabo acordou os bêbados e chamou a atenção do garçom para a conversa.
- E qual a graça disso? – perguntou-me, como se fosse realmente uma piada, mas, no fundo de sua alma (se é que se pode chamá-la por esse nome) havia certo interesse.
- É simples, companheiro. Você existe pela eternidade, sem preocupar-se com a vida ou a morte, principalmente com esta última. Muito pelo contrário, você promove-a. O mundo com vida ou sem vida, você e Deus sempre hão de existir. Estão fadados ao castigo da eternidade pela criação do universo. E o que eu lhe proponho? Viva uma vida mortal. Conheça o que é ser como eu, como era Fausto, como era Macário. Conheça como é comemorar um aniversário, mais um ano de vida; como é celebrar o ano novo cheio de esperança, esperando sempre coisas melhores, pois não se sabe quando a vida irá acabar. Sinta o peso da idade avançando sobre seu corpo, tirando-lhe os cabelos, encolhendo-lhe os membros, tornando-o podre. Sinta como é a perda de alguém pela morte. O medo de acontecer o mesmo com você. O pavor de perder tudo que você construiu nessa vida. E a volúpia do último suspiro. O derradeiro cerrar dos olhos. O sono profundo. Você não tem nada disso, inveja-nos. Está escrito no seu interior. Você condena as pessoas quando, na verdade, você mesmo já está condenado.
Ele ouvia-me atentamente.
- Então, ouviu minha proposta? Simplesmente entregue seu cargo temporariamente a um dos seus subordinados lá de onde você vem e faça essa experiência. Sinta na carne humana o que é a dor, o que é o medo, a tristeza, a violência, o terror que tanto você promove.
O garçom olhava-me estupefato.
Talvez estivesse se perguntando como alguém poderia ficar tão bêbado com apenas duas garrafas de vinho.
O diabo permanecia calado.
Finalmente levantou-se, tomou o último trago de vinho do seu copo e virou-se para a saída.
Ao abrir a portar ele tornou seu rosto para mim e disse, carinhosamente:
- Obrigado!


André Espinola

7 comentários:

. disse...

eu gostei tanto, mas tanto desse conto.

É quase imperceptível a nós o desespero do mau. Mesmo porque o mau é o desespero. Vale a pena pensar mais profundamente às vezes.

parabéns!

beijos

Augusto Sapienza disse...

Reflexivo e instigante!
Muito bom...
Abraços

Anônimo disse...

Uma proposta interessante...e dos dois modos se sofre, as escolhas são dolorosas, as alternativas são só um aviso. Bom conto!

*Caroline Schneider* disse...

Ai André... este é aquele tipo de conto que a gente vivencia, parecendo que está no local, vendo a cena, e ao mesmo tempo, morrendo de inveja do autor, por não ter tido a idéia de escrevê-lo antes! (muitos risos) Conto cheio de poesia implícita de vida, repleto de sabedoria, ensinando-nos o que é viver dia após dia... CARPE DIEM! Parabéns amigo! pelo texto, pelo talento, pela sabedoria! Beijocas estaladas* e bom domingo

Larissa Marques - LM@rq disse...

André, mesmo conhecendo profundamente sua obra, consegue me surpreender. E pra mim, isso é que é ser bom!
Beijo!

Glauber Vieira disse...

André, seu texto está muito bom, prende a atenção do início ao fim. Só percebi alguns errinhos, veja só: há o seguinte trecho "Havia ainda muito caminho ainda pela frente" - tem dois "ainda", tire um.
Já no finalzinho, vc escreveu "portar" em vez de "porta".Mas são apenas errinhos bobos, seu texto tá ótimo, parabéns!

ofilhodoblues disse...

valeu pelos comentários e valeu pelas correções Glauber!

flew!